José Geraldo de Sousa Junior¹ –
Ditadura no Brasil – A violência sofrida pela sociedade durante o período de ditadura civil-militar no Brasil foi, sem dúvida, um fator de deturpação da ética democrática no país. A vivência num contexto de repressão torna muito vulnerável a relação entre indivíduos, e o revés de um sistema de governo como esse é a formação de uma disposição à corrupção, que, no caso brasileiro, se perpetuou como prática instituída mesmo após o fim do regime.
O maior dos prejuízos de uma ordem corrupta é a apropriação do bem comum para uso exclusivo. Quando tratamos de uma instituição universitária pública, tal intenção traduz-se na utilização desta complexa estrutura educacional para atender a fins particulares, não diretamente relacionados à promoção do bem-estar social. Esse desvio de função pode variar desde a usurpação do patrimônio público até o exercício do tripé ensino, pesquisa e extensão voltado à simples fruição intelectual, em lugar de atender à sociedade, gerando desenvolvimento e inovação para satisfação de suas demandas.
A UnB – Nosso fiel da balança deve ser a missão original da UnB, como designada por seus idealizadores, sob a liderança de Darcy Ribeiro, Anísio Teixeira e Frei Matheus Rocha: uma universidade necessária, destinada a pensar o Brasil e a América Latina em suas questões sociais, visando à emancipação da população e a promoção da igualdade e justiça social. Valores que se mantém absolutamente atuais, independentemente das transformações vividas pelo ensino superior no mundo ao longo dos últimos anos, e que vimos serem sufocados durante a ocupação militar da universidade.
Hoje é possível dizer com segurança que o processo de recuperação da essência deste projeto está em curso. Testemunhamos nos últimos quatro anos (2008-2012) o marco de refundação da UnB, evidenciado pela sua expansão física, com uma área total construída 40% maior do que se encontrava nos anos anteriores à presente gestão e duplicação do número de vagas para novos alunos, que saltou de 4 mil para 8 mil por ano. É certamente o maior episódio de ampliação da universidade desde sua inauguração em 1962.
Acima de tudo, pôde-se observar, neste mesmo espaço de tempo, a valorização do diálogo e da participação política na gestão da universidade, que triplicou o número médio de reuniões de seus conselhos administrativos, reunindo representantes de todos os segmentos da comunidade acadêmica, além de novos canais de comunicação, como mesas permanentes de negociação, e, especialmente, a consolidação da paridade recém-instaurada entre discentes, docentes e técnicos administrativos nas eleições para a reitoria.
UnB e comunicação nos anos 1970 – Nesta fase de transição da UnB, contudo, tais valores não estão ainda estabilizados, e é preciso construir uma identidade institucional de referência forte o suficiente para subsidiá-los. Desta incumbência participa com louvor o trabalho de Marco Antônio Rodrigues Dias, que tem como um entre muitos méritos a recuperação historiográfica de um delicado momento da trajetória da Universidade de Brasília.
Cobrindo o período de 1968 a 1977 a partir de extensa pesquisa bibliográfica e de seu próprio depoimento pessoal como professor, chefe do departamento de Comunicação, decano de extensão e vice-reitor, Marco Antonio nos revela detalhes sobre a UnB, usualmente encobertos pela narrativa histórica dominante.
O texto oferece uma nota singular, em geral negligenciada nas muitas narrativas históricas de nossa Universidade. Além de registrar com riqueza de dados o desenvolvimento da Faculdade de Comunicação, e, de maneira geral, realizar uma análise panorâmica sobre a UnB naquela década considerada, o autor nos traz à superfície da memória fatos que ocorreram durante a gestão de dois reitores: Caio Benjamin Dias e seu sucessor Amadeu Cury.
Segundo o autor, durante a administração de ambos, apesar de serem representantes do sistema e em que pese a influência da doutrina e da lei de segurança nacional presentes em toda a administração pública naquele período, manteve-se, na UnB, um movimento de resistência em favor da retomada da liberdade, que sonhava reorganizar a instituição em seus moldes iniciais, prematuramente interrompidos. A equipe de Caio Benjamin Dias na reitoria teria criado uma situação de acordo tácito entre administração, professores e estudantes, para permitir que até mesmo opositores radicais ao regime fossem admitidos como docentes, com a condição de não participarem de movimentos organizados contra o governo.
Essa proposta teria tido continuidade na gestão de Amadeu Cury, mas o objetivo que se buscava alcançar já não era o da universidade cidadã de Darcy Ribeiro nem o da universidade autônoma de Caio Benjamin Dias. O que se buscava formar era uma mão de obra qualificada tecnicamente para as empresas e para o governo, tudo sob o controle dos órgãos de segurança. O acordo que se manteve permitiu, no entanto, segundo Marco Antônio, o ingresso na UnB de dezenas de professores de alta qualidade, além de garantir uma pequena margem de liberdade de expressão dentro da Universidade. As gestões para a contratação dos docentes orientavam-se principalmente na busca de qualidade, buscando especialistas no Brasil e no exterior e oferecendo os mais elevados salários da categoria no país. Também pode-se destacar o grande incentivo à pesquisa, com a execução de um extenso plano de pós-graduação e a inauguração de novos laboratórios, bem como a reposição daqueles que haviam sido destruídos na invasão militar.
Como destaca Marco Antônio, faltavam aos então reitores a visão revolucionária de Darcy Ribeiro, mas o apego e respeito ao projeto original da Universidade, pelo menos no caso de Caio Benjamin Dias, era explícito. O objetivo final, segundo Caio Benjamin Dias, era restituir o plano estrutural da UnB, num marco de autonomia e, segundo ambos os reitores, ampliar seu potencial institucional, projetando-a como a grandiosa instituição de ensino superior que fora idealizada. No entanto, a partir de 1976, por ocasião da recrudescência do estado político ditatorial brasileiro, os acordos seriam rompidos e observaríamos um retrocesso significativo nas políticas universitárias, particularmente no caso da UnB.
Resistência dentro da universidade – Ainda assim, o registro deste período é prova de que a UnB não foi engolida pelo mar revolto da ditadura sem levantar resistência, ou sem que muitos dos que a constituíam naquele momento, encantados por seu propósito, não a tentassem salvar do afogamento.
Recuperar este passado histórico é reconstruir a memória da UnB e oferecer aos seus membros no presente um novo ponto de partida para inspirar a trajetória de suas ações. Uma mitologia original que sirva como guia às novas gerações.
O livro de Marco Antonio Dias antecede o Relatório elaborado pela Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB (2015), uma peça preciosa, na sua pesquisa histórica e no modo circunstanciado como caracteriza o projeto interrompido da Universidade, demarcando o período resgatado pelo depoimento do autor como o de repressão exacerbada a todo foco de oposição, com expulsões, prisões, torturas, desaparecimentos (1968-1974, Relatório p. 96-168). Teria sido importante o dialogo com o autor para contextualizar algumas das interpretações enunciadas nos dois documentos.
Mas o livro é posterior e o valoriza, porquanto acrescenta à pesquisa nele constante referida a período anterior, objeto da obra de Roberto A. Salmeron (A Universidade Interrompida. Brasília: Editora UnB, edição comemorativa dos 50 anos da UnB, 2012). Aludo ao livro de Salmeron, porque o reconheço como verdadeira obra de referência para compreender esse Período dramático da história política do país e da UnB, parte dela recortada no livro de Marco Antônio Dias. Na apresentação da edição comemorativa de A Universidade Interrompida, então Reitor da universidade, digo mesmo que
Tamanha relevância é, com efeito, fruto da autenticidade da participação do autor como pioneiro na implantação da UnB. Roberto Salmeron figura entre os destacados pesquisadores brasileiros que acudiram à convocação de Darcy Ribeiro para instalar na nova capital do Brasil a sua universidade necessária. Quando assume o encargo de coordenador-geral dos Institutos Centrais de Ciências e Tecnologia, promove uma recuperação histórica dos antecedentes políticos e conceituais da formulação do projeto da UnB, das ações que orientaram a etapa inicial de construção do campus e, por fim, da violência que se abateu sobre a instituição com o golpe militar, caracterizando-a como uma universidade interrompida.
O livro está dividido, assim, em duas partes. A parte 1 concentra-se na reconstrução da memória sobre a UnB, tratando dos acontecimentos que cercam a sua fundação e da crônica dos fatos que caracterizam as bases conceituais e políticas da proposta da nova universidade. Além disso, a localiza no ensaio de tentativas de institucionalização universitária no país, detalhando a operacionalização da instalação do projeto, os protagonismos, os sentimentos e, sobretudo, a solidariedade para defrontar e superar os desafios próprios àquela experiência.
A parte 2 trata, por sua vez, da crise e da violência com que o golpe se impôs sobre a Universidade, intimidando alunos e professores, desorganizando-a, reprimindo seu poder criativo e ferindo antagonistas.
Ambas as seções são cuidadosamente documentadas e pode-se observar a delicadeza do trabalho de Roberto Salmeron na conservação de depoimentos e dados históricos, alinhavados pelo fio condutor de uma narrativa sóbria, elegante e contundente.
A Universidade Interrompida, sob este aspecto, integra a antologia explicativa de criação da UnB, sua promessa utópica, as vicissitudes que sofreu, seu começo e seus permanentes recomeços. O livro tem lugar cativo na mesma estante na qual se classificam outras preciosidades, como os títulos de Darcy Ribeiro: Universidade de Brasília, editado em 1962 e reeditado pela UnB em 2011 para celebrar o cinqüentenário da lei de criação, apresentando o projeto de organização, a lei de criação e pronunciamentos de educadores e cientistas sobre a proposta da nova universidade; A Universidade Necessária, de 1969; e UnB: Invenção e Descaminho, de 1978. Além destes, é igualmente indispensável referir à obra de Heron Alencar, A Universidade de Brasília. Projeto Nacional da Intelectualidade Brasileira, resultado de uma comunicação apresentada à Assembléia Mundial de Educação, no México de 1964, e publicada por Darcy Ribeiro em apêndice ao seu Universidade Necessária. Também Antônio Luiz Machado Neto, coordenador do Instituto Central de Ciências Humanas neste mesmo período de 1962-1965 e inspirado pelo mesmo tema, publica, na antiga Revista da Civilização Brasileira, o ensaio A Ex-Universidade de Brasília.
Encerro estes comentários endossando as palavras de Marco Antônio como um vaticínio para a UnB: “O final último de toda a ação educativa deve ser sempre o de se construir e consolidar uma sociedade melhor, mais justa e mais solidária, como era previsto no projeto de criação da UnB de Darcy Ribeiro. E, no caso específico da UnB, é de se desejar que, em algum momento, um verdadeiro diálogo se instaure e se mantenha permanente, capaz, inclusive, de fazer superar divergências naturais entre indivíduos em benefício do bem comum, da instituição, da sociedade”.
Penso que uma boa síntese a extrair da narrativa interpretativa oferecida neste livro, à luz das singularidades que ele registra, é a de por em relevo o princípio de lealdade. A lealdade como expressão de compromisso que o projeto original da UnB postulava, com os padrões internacionais de conhecimento e a formação de cidadãos aptos a construírem soluções democráticas para os problemas do povo brasileiro. A lealdade que forja atitudes para fortalecer e reorientar a própria UnB para retomar a direção da utopia que nenhuma interrupção impediu que ela continuasse a buscar.
Inclui-se nessa lealdade, recuperar o projeto inovador da Universidade (conferir com o meu Da Universidade Necessária à Universidade Emancipatória. Brasília: Editora UnB, 2012), para nesse passo resgatar o compromisso histórico de seus professores com a promessa de realizar a comunicação e a informação como direito fundamental, inscrito na Declaração Universal de 1948 (art. 19) e no desenho democrático que a Constituição Federal de 1988 traçou (artigos 220-224) para o sistema, promessa ainda não cumprida em face de obstáculos representados pelo interesse econômico em forma de monopólios e oligopólios, infenso às finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e aos objetivos de descentralização e de regionalização de programas, sua produção e difusão (conferir também, nesse aspecto SOUSA JUNIOR, José Geraldo de et al. (orgs) O Direito Achado na Rua, vol. 8: Introdução Crítica ao Direito à Comunicação e à Informação. Brasília: FAC Livros, edição e-book 2016, edição impressa 2017).
As conseqüências são hoje nefastamente sentidas sendo uma constatação o papel dos grandes meios na ação antidemocrática de seu uso político. Eis um projeto ainda longe de se realizar mas já prenunciado na leitura de Marco Antônio Dias que faz da primeira parte de seu livro, uma análise completa e esclarecedora do que se definia como política de comunicação no Brasil nos anos 1970, e os esforços que se faziam na UnB em face dessa política visando a abrir a comunicação estrategicamente em direção a um horizonte de cidadania e de democracia.
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¹José Geraldo de Sousa Junior é professor da Faculdade de Direito, ex-Reitor da Universidade de Brasília e membro da Comissão Justiça e Paz de Brasília.
Publicado originalmente no site Estado de Direito! Em 07/11/2018.