Sem criança, nada se cria

Por Dioclécio Campos Júnior

Para o Correio Braziliense –

O relevante valor do período de vida infantil há de ser devidamente reconhecido pela sociedade brasileira. A criança ainda é tida como insignificante miniatura do adulto, razão pela qual é adulterada em todos os sentidos. Seus direitos e virtudes, absolutamente originais, são tratados com chocante desprezo. Assim, o mérito da infância não é respeitado à altura da dimensão sublime que possui.

Infanticídio e abandono, práticas deploráveis que eram predominantes no passado primitivo da humanidade, prevalecem entre as atrocidades com as quais grande número de crianças são eliminadas no Brasil. Cerca de 40 mil delas desaparecem misteriosamente do país a cada ano. É evidente a insensibilidade das instâncias governamentais diante de tamanha agressão contra o ser humano na sua etapa de vida mais vulnerável. Perpetram-se aviltantes crimes contra nossa população infantil nos ambientes em que é vítima de omissão, negligência e dos mais violentos abusos. Condições seguras, amorosas e estimulantes são indispensáveis ao crescimento físico e ao desenvolvimento neuropsicomotor de nossas crianças, desde a sua vida intrauterina.

Núcleos familiares acolhedores e espaços urbanos de qualidade são os requisitos essenciais ao êxito da complexa e dinâmica metamorfose que caracteriza o organismo de infantes e adolescentes. É quando o ser humano em formação precisa ser estimulado com afeto, ternura e carinho, a fim de que seu cérebro possa alcançar elevada capacidade de aprendizagem, característica inerente à infância. Se, durante o período de vida infantil, esse direito não for igualitariamente assegurado a todos os recém-nascidos, as iniquidades econômico-sociais continuarão irreversíveis. A violência e a criminalidade persistirão como graves impactos de uma crescente pandemia que desagrega os laços fraternos sem os quais o comportamento selvagem continuará tomando conta da sociedade brasileira.

Outra triste evidência de que o país não se preocupa com a construção do futuro é a banalização da queda da taxa de fecundidade. Torna-se assim impossível renovar a população. Esse indicador demográfico é a média do número de filhos por mulher na fase de vida reprodutiva. Quando cai abaixo de 2,1, a base econômica da sociedade será insustentável no futuro próximo. No Brasil, a taxa de fertilidade é de 1,7. Nas décadas vindouras, o país não contará com o número suficiente de habitantes para reconstruir o seu quantitativo populacional, ação que lhe é indispensável. Para que essa tendência demográfica negativa seja revertida, somente serão eficazes as ações governamentais que reconheçam, valorizem e estimulem o nobre papel da família das novas gerações, particularmente o exercício da maternidade.

Nesse sentido, duas providências concretas contribuiriam para a renovação populacional do país. A primeira delas seria a universalização da licença-maternidade de um ano, inteiramente remunerada, como acontece em países bem desenvolvidos. A segunda seria a redução de 5 anos da idade mínima de aposentadoria para os casais que tenham de dois a três filhos, criados e educados com a assistência humana necessária. O objetivo do investimento a ser feito com tão relevante propósito não há de se restringir ao incremento da mão de obra para o trabalho.

Deverá ter como meta, acima de tudo, o aumento da quantidade de cidadãos e da qualidade das respectivas funções cerebrais. É a única maneira segura de projetar um futuro sólido, produtivo e criativo para o país. A sociedade deverá dedicar-se à luta pela assistência humana que a infância requer e merece. Sua alta capacidade de aprendizagem somente será viabilizada com projetos de saúde e educação de alto nível nessa fase de amadurecimento cerebral. Requer a qualificação dos profissionais que cuidam da infância.

Fala-se muito em capital econômico como se fosse solução para tudo e para todos. Na verdade, não deixa de ser um dogma que contraria a maior parte das evidências científicas disponíveis. Aprender, pensar, refletir, interagir e criar são ações mentais que não podem ser desmerecidas. É o que somente a criança virá a ser capaz de fazer desde que tenha desenvolvido o potencial cognitivo com o qual vem ao mundo. Em síntese, o grande desafio que se coloca para o país, num momento tão decisivo para sua sólida reconstrução, é implementar o aumento do capital cognitivo das futuras gerações. Trata-se de nobre fonte inspiradora do progresso justo e unificador da sociedade humana. Sem criança, nada se cria.


DIOCLÉCIO CAMPOS JÚNIOR Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, atual presidente do Global Pediatric Education Consortium (Gec) %u2014 E-mail: dicamposjr@gmail.com

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