Paulo Freire: para além da alfabetização de adultos

Venício A. de Lima e M. A. Rodrigues Dias – 

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Durante muito tempo fui visto como um especialista em educação de adultos, um bom técnico, o autor de um método eficiente. Mas acho que desde meus primeiros estudos, mesmo com ingenuidade, já explicitava uma visão maior da alfabetização. Se isto não está claro em meu primeiro livro, em Pedagogia do Oprimido esta percepção se faz bem presente. E se faz clara também na minha prática e na teoria da minha prática

Paulo Freire, Correio Braziliense 24 de outubro de 1982  

 

Um pedagogo brasileiro e humanista reconhecido internacionalmente

Paulo Freire (1921-1997) foi um pedagogo brasileiro e humanista conhecido por seus esforços de alfabetização para combater a opressão.

Reconhecido como o \”patrono” da educação brasileira\” pelo Congresso Nacional, Freire é o educador brasileiro que mais recebeu homenagens no mundo inteiro. Sua obra-prima \”Pédagogia des Oprimidos\” (1968, publicada pela primeira vez em 1970) é o terceiro livro mais citado na literatura das ciências sociais e está entre os 100 livros de leitura recomendados pela universidades anglófonas. Heinz-Peter Gerhardt, um especialista alemão, diz que \”Freire é hoje, sem dúvida, o mais renomado educador do nosso tempo\”.

Entre as inúmeras honrarias, Freire foi nomeado professor emérito de várias grandes universidades, recebeu 39 doutorados honoris causa e, em particular o prêmio UNESCO da educação para a paz em 1986. Entre 1989 e 1991, Freire foi secretário de educação de São Paulo, o melhor que a cidade já teve, segundo vários analistas. Ele é autor de dezenas de livros, artigos, artigos e palestras publicados em mais de 30 idiomas. É difícil elaborar uma lista completa das teses de doutoramento e publicações sobre seu método, sua ação e pensamento. Chamamos a atenção para alguns de seus livros: – \”Pedagogia do Oprimido\” (1968, publicado pela Paz e Terra, escrito enquanto o autor vivia exilado no Chile[1]; no Brasil, devido à censura, o livro só circulou em 1974); “Educação como prática da liberdade” (1967, ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro); “Extensión o Comunicación?” (1969 , ICIRA, Santiago do Chile); “Ação Cultural e Outros Escritos\” (1976) ed. Paz e Terra); “Cartas à Guiné-Bissau – Registros de uma Experiência” (1977, Ed Paz e Terra); “Pedagogia da Esperança – Um Reencontro com a Pedagogia do Oprimido” (1992, com notas da viúva do autor, Ana Maria Araújo Freire), ed Paz e Terra; “Pedagogia da Autonomia – Saberes Necessários na Prática Educativa\” (1997 , Paz e Terra ).

Em sua primeira fase, Freire foi claramente inspirado pelas idéias humanísticas de um dos criadores da UNESCO, Jacques Maritain, mas também de Thomas Cardonnel, Karl Mannheim, Karl Jasper, Gunnar Myrdal, Gabriel Marcel, Emmanuel Mounier. e de alguns de seus intérpretes brasileiros, como Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde). Sua obra, embora não diretamente relacionada aos movimentos da Ação Católica Brasileira, foi paralela a ela e foi fortemente atacada pelos militares que tomaram o poder no Brasil em 1964. Alguns setores do Exército consideravam os membros da esquerda católica  como mais perigosos do que os comunistas. Freire tinha abertura de espírito e estabeleceu vínculos com pensadores do Instituo superior de estudos brasileiros (ISEB) do Rio de Janeiro (Hélio Jaguaribe, Anísio Teixeira, Álvaro Vieira Pinto, Roland Corbisier), e com pessoas como Costa Lima, reitor da Universidade do Recife e Miguel Arraes, um dos ícones da esquerda brasileira nos anos 60.

Freire dirigiu o Departamento de Extensão Cultural da Universidade do Recife, no início dos anos sessenta. Ele já era uma referência para as novas gerações, como também um dos principais líderes do Movimento da cultura popular, onde ele mostrou que cultura não é sinônimo de um acúmulo de conhecimento sobre os clássicos da literatura ou música, mas um elemento de transformação do universo pelo homem.

O sucesso de suas ações no Nordeste brasileiro, estimulou um um ministro da Educação de centro-esquerda, o democrata-cristão católico, Paulo de Tarso Santos, a lançar uma campanha nacional de alfabetização. A resistência ao método de Freire mobilizou a grande imprensa, os veículos de comunicação mais importantes, os grupos políticos, uma parte da ‘inteligentsia’ burguesa, que viram nesta ação uma ameaça a seus privilégios. Segundo eles, como os analfabetos não tinham o direito de voto, a campanha de alfabetização poderia provocar uma revolução no Brasil. Freire foi forçado a se exilar em 1964, depois de passar setenta e cinco dias na prisão, acusado de ser um \”revolucionário\”. Passou quatro anos no Chile, um nos Estados Unidos e, em 1970, ele era encontrado em Genebra, onde trabalhou para o  Conselho Ecumênico das Igrejas. Retornou ao Brasil. em 1980.

 

 No coração de sua ação, a Pedagogia dos oprimidos

\”Conscientização e Alfabetização, uma visão do processo\”, um artigo publicado em ‘Estudos Universitários’, revista de cultura da Universidade de Recife (No. 4 de 1963), estabelece as bases para muitas das suas obras. Este texto é, talvez, o primeiro a introduzir os conceitos de Freire sobre a metodologia da alfabetização, que não cessam, desde então, de maravilhar o mundo por sua capacidade de alfabetizar os adultos com quarenta horas de curso ou menos ainda. Em 1964, o Brasil tinha 40 milhões de analfabetos para uma população total de 81 milhões de pessoas. Os editores da revista acentuam que a perspectiva de Freire é estritamente realista, na medida em que afirma que a realidade não é apenas objetiva, mas também reconhecível. Como ele diz, \”o homem não está apenas na realidade, mas também com ela\”. Por conseguinte, \”os homens são seres de relações e não somente de simples contatos”. A capacidade do homem de compreender a realidade faz dele um ser essencialmente crítico, capaz de distinguir as \”diferentes órbitas existenciais\”  e, ao fazê-lo, é capaz de traír sua natureza temporal. O homem é, portanto, mais do que um ser de relações ele é um ser essencialmente histórico.  

A longa experiência de Freire com os trabalhadores e camponeses do Nordeste levou-o a considerar que os analfabetos tomarão consciência de sua própria realidade,  por meio de uma discussão detalhada, mas sobretudo informal de seus problemas socioeconômicos. O processo educativo deve se basear no entorno do aprendiz. Não é suficiente aprender a ler: \”Eva viu a uva\”. É necessário aprender a situar Eva em seu contexto. Falar de uma fruta que as pessoas nunca viram não faz sentido. É necessário levar em conta o universo linguístico dos aprendizes. Nas cidades-satélites de Brasília, no início da década de 1960, quando os alfabetizandos estavam ligados à construção civil, a palavra-chave usada era \”tijolo\”. Uma pedagoia inteiramente baseada sobre o diálogo com os analfabtos será desenvolvida, com o objetivo de levá-los a se motivar e, a partir daí, a capacitar- se.

Entre as muitas obras de Freire, A Pedagogia do Oprimido (1968) é certamente a mais importante. Em uma dedicatória firmada na primavera de 1968, ele escreveu:  

“Queria que vocês recebessem estes manuscritos de um livro que pode não prestar, mas que encarna a profunda crença que tenho nos homens”.

 

Ele não poderia jamais ter imaginado que, cinquenta anos mais tarde, este livro teria um tal sucesso em todo o mundo. Mas esta “convicção profunda (que tem) dos homens\” é certamente o fio condutor mais universal de toda sua obra.

De acordo com o crítico literário Antonio Candido, “Freire foi um pensador atuante, que fez da educação um instrumento humanizador de cunho ao mesmo tempo prático e utópico”e  “dificilmente se encontrará quem, em nosso tempo, tenha concebido de maneira tão vivaz e convincente o caráter democrático da educação”.  Além disso, “o seu famoso método é o das conquistas mais positivas do pensamento humanizador neste século (XX)”

 

Segundo Freire, Pedagogia do oprimido é aquela dos \”homens engajados na luta por sua libertação \” .

“Aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos, de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação”.

 

Ou seja, estar ciente da opressão não é suficiente, como diz Freire:

reconhecerem-se limitados pela situação concreta de opressão (…) não significa ainda sua libertação (…) somente superam a contradição em que se acham quando o reconhecerem-se oprimidos os engaja na luta por libertar-se”.

 

Dar destaque aos que aprendem/ensinam e não ao educador e assegurar que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” é o que parece ser a marca do pensamento de Freire .       

 

Um método revolucionário de educação para Adultos

Uma das principais limitações da maioria dos estudos Freire é a redução de seu pensamento e de sua prática a seu método revolucionário de educação de adultos. Ele mesmo chamou a atenção para o fato de que ele entendia a alfabetização em um contexto mais amplo. Vários conceitos básicos do pensamento de Freire nos ajudam a entender o processo contemporâneo de educação, comunicação e cultura.

Discutiremos dois desses conceitos críticos: o da \”extensão rural e educacional\” (em oposição à comunicação), que influenciou a orientação dos serviços de extensão nas universidades e o da \”cultura do silêncio\”.

Durante muito tempo – até o início dos anos setenta – o conceito de extensão, e especialmente o de extensão rural, foi na América Latina sujeito a um modelo de comunicação desenvolvido nos Estados Unidos e divulgado principalmente por “The process of communication” de David Berlo, em que a comunicação é considerada um processo mecanicista de manipulação dos indivíduos e das massas. Este modelo foi aplicado na comunicação, em particular na publicidade, mas, mais tarde, estendeu-se às atividades chamadas de extensão ou de vulgarização educativa nas universidades latino-americanas. O receptor é considerado um objeto e não um sujeito. Nem as condições sociais e culturais nem as necessidades das populações são levadas em consideração. Os meios de comunicação, como as atividades educacionais, só devem servir ao público na medida em que servem de suporte à modernização baseada em um preconceito etnocêntrico ocidental, que considera as formas de organização das sociedades como universais, sem tomar em consideração  a diversidade cultural, a formação histórica das populações, a diversidade na condução das estruturas sociais. Nos EUA, extensão rural e universitária são dois conceitos intimamente relacionados que se baseiam no mesmo fundamento filosófico e ideológico. Eles servem à modernização consolidando um sistema político, econômico e financeiro.

Para entender esta realidade, é necessário recordar que, nos anos cinquenta e sessenta, os Estados Unidos enviaram aos países em desenvolvimento milhares de especialistas, os \”difusionistas\”, responsáveis pela modernização dos países \”atrasados\”, provocando e estimulando mudanças em suas instituições e comportamentos. Os habitantes tinham que abandonar suas tradições e aceitar os valores do mercado de acordo com o modelo ocidental. Eles eram encorajados a mudar suas relações urbanas, sociais e políticas e a procurar estabelecer uma democracia baseada na cópia dos sistemas anglo-saxões.

Os trabalhos dos difusionistas foram estruturados através do que foi então chamado de \”extensão rural\” . Essas ações influenciaram os sistemas universitários latino-americanos, que começaram a adotar um modelo segundo o qual as universidades deveriam basear as suas actividades em um tripé formado por ensino, pesquisa e uma ampla extensão. Esta podia ser rural ou cultural ou ainda industrial.  Podia ser implementada através de serviços, consultas e estágios; podia ser comunitária, com as instituições de ensino superior colaborando com o desenvolvimento das comunidades inclusive nas zonas rurais, através da criação de cursos, desenvolvendo projetos de serviço, realizando trabalho sob a forma de estágios, etc.

Este conceito implicava que a universidade atuasse sobre a comunidade, expandindo suas atividades de ensino e pesquisa. A comunidade era vista como um objeto, um elemento passivo, como o mero receptor de outro pólo, exógeno e superior. O livro clássico do difusionismo é o de Everett Rogers e Floyd Shoemaker, “Comunication of Innovations” (1971). Em 1976, Rogers publicou, com a colaboração de especialistas da América  do Norte e do Terceiro Mundo, “Communication and Development – Critical Perspectives”, no qual são apresentados vários erros na aplicação da teoria difusionista nos países em desenvolvimento.

Essa perspectiva elitista e mecanicista foi fortemente contestada na América Latina graças à obra fundadora de freire em ‘Extensión o Comunicación?’, livro publicado originalmente no Chile, em 1968. Em um número especial do boletim da Associação Nacional das Instituições de Ensino Superior (ANUIES , México) , Ofélia Angeles afirma:

\”A Segunda Conferência Latino-Americana sobre Extensão e Difusão Cultural das Universidades, realizada na Cidade do México em 1972 (…), questiona fundamentalmente o caráter social da extensão, a falta de participação da sociedade nas decisões que lhe dizem respeito e diz, com uma forte influência das teorias e experiências de Freire no campo da alfabetização, que esta extensão e difusão devem ser libertadoras no sentido de que devem promover a sensibilização dos indivíduos sobre a sua realidade para que eles se engagem de maneira assumida para agir sobre ela, transformando-a\”.

Com base no pensamento de Freire, os  participantes nesta conferência definiram a extensão como \”a interação entre a universidade e os outros componentes do corpo social, através da qual ela assume e cumpre o seu compromisso de participar nos processos sociais de criação da cultura, de libertação e de transformação radical da comunidade nacional\”.

Em outras partes do mundo, e especialmente nos países francófonos , o termo extensão é pouco usado. Em uma declaração adotada pelo UNESCO, em 1998, na Conferência Mundial sobre Educação Superior (CMES), a interação entre a universidade e outros componentes da sociedade foi incluída no conceito de \”pertinência\”, que deve ser medida comparando o que as universidades fazem e o que a sociedade espera delas, como indicado nor documento de trabalho redigido por Jean Marie de Ketelle:

\”A pertinëncia  do ensino superior deve ser vista principalmente em função de seu papel e lugar na sociedade,de  sua missão na educação, pesquisa e serviços daí originados, bem como de seus vínculos com o mundo do trabalho em seu sentido mais amplo, de suas relações com o Estado e as fontes de financiamento público e de suas interações com outros níveis e formas de educação\”..

Freire não é mencionado nesta Declaração, mas muitas de suas idéias nela estão incluídas. Assim, o texto insiste em que os estudantes devem ser considerados como atores e não como receptores do processo de educação. É o oposto do que preconizam os sistemas tradicionais que adotam o que Freire chama de \”conceito bancário de educação\”.

Os princípios da CMES foram ratificadas pela Segunda Conferência Mundial sobre o ensino superior de 2009 e pela Terceira Conferência regional sobre educação supérior  de Córdoba (CRES), realizada em Córdoba, Argentina (junho de 2018), organizada para as comemorações do centenário da reforma e da declaração de Córdoba . Mais de dez mil participantes adotaram um documento postulando que a educação superior é um bem público social, um direito universal e humano e um dever dos Estados. Significativamente, os participantes declararam que o mundo acadêmico \”não pode silenciar sobre as deficiências e dores dos homens e mulheres, e como Mario Benedetti veementemente afirmou,  \”há poucas coisas tão ensurdecedoras como o silêncio\”.

 

Contra a \”cultura do silêncio\”

Este último ponto nos leva ao conceito de \”cultura do silêncio\” que que emerge na obra de Freire como resultado da busca permanente pelas razões históricas que têm levado enormes contingentes de homens e mulheres – inicialmente na sociedade brasileira, depois na latino-americana e, ao cabo, até mesmo no mundo chamado de “desenvolvido” – a nascer, viver e, sobretudo, permanecer na condição de oprimidos, emudecidos, sem ter sua voz ouvida e excluídos de decisões que dizem respeito à construção de regras determinantes de suas próprias vidas .  

Embora nunca tenha escrito um texto específico sobre o que vem a ser cultura do silêncio, Freire considerava a superação dela, através da ação cultural para a liberdade – que possibilita a tomada de consciência de homens e mulheres como sujeitos de seu próprio destino, capazes de criar cultura e transformar o mundo – condição indispensável para a plena realização humana.

Em sua tese intitulada ‘Educação e Realidade Brasileira’, escrita na Escola de Belas Artes do Recife (Pernambuco) em 1959, Freire antecipa um vasto número de observações que aparecerão revisadas e atualizadas oito anos mais tarde em seu primeiro livro.

Freire inicia uma reflexão sobre \”a inexperiência democrática brasileira\”, explicada pela interpretação de que o Brasil seria \”um país sem pessoas”. Para apoiar seu argumento, ele recorre a vários autores clássicos brasileiros e diz:

Entendemos por mutismo brasileiro a posição meramente expectante do nosso homem diante do processo histórico nacional. Posição expectante que não se alterava em essência e só acidentalmente, com movimentos de turbulência, a constante, mais uma vez era o mutismo, o alheamento à vida pública. (…).

Alguns anos mais tarde, em Educação como prática de liberdade (1967), mesmo antes de retomar o tema da \”inexperiência democrática\”, Freire nota  \”a emergência” do povo na história do Brasil:

“Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo [histórico], na emersão descruza os braços e renuncia à expectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. A sua participação (…) ameaça as elites detentoras de privilégios. Agrupam-se então para defendê-los (…). E, em nome da liberdade ‘ameaçada’, repelem a participação do povo. Defendem uma democracia sui generis em que o povo é um enfermo a quem se aplicam remédios. E sua enfermidade está precisamente em ter voz e participação. Toda vez que tente expressar-se livremente e pretenda participar é sinal de que continua enfermo, necessitando, assim, de mais ‘remédio’. A saúde, para esta estranha democracia, está no silêncio do povo, na sua quietude.

O segundo capítulo do “Educação como Prática da Liberdade”, é inteiramente dedicado à discussão da “inexperiência democrática”. Freire enfatiza a ausência de uma vida comunitária na experiência colonial brasileira. Ele sustenta que “o Brasil nunca experimentou aquele senso de comunidade, de participação na solução de problemas comuns […] senso que se ‘instala’ na consciência do povo e se transforma em sabedoria democrática”.

Freire retoma o tema do mutismo e prossegue afirmando que o mutismo é característico da sociedade a que se negam a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhes oferecem “comunicados”. Insiste que essas sociedades se tornam preponderantemente “mudas” e chama a atenção para o fato de que o mutismo “não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de criticidade.”

Pouco depois, em 1968, Freire usa pela primeira vez o termo \”cultura do silêncio\”, referindo-se à América Latina como um todo:

Estamos convencidos – hoje, mais do que nunca – que aquilo que chamamos de cultura do silêncio, introjetada como “inconsciente coletivo” pelos camponeses, não pode ser transformada mecânica ou automaticamente pela mudança infra estrutural operada através do processo de reforma agrária. Esta cultura do silêncio, tão característica de nosso passado colonial, nutre-se e deita suas raízes no solo favorável da estrutura de propriedade da terra na América Latina. Histórica e culturalmente, esta cultura do silêncio assumiu a forma de uma “consciência camponesa”, ou na definição de Hegel, uma “consciência servil” (Relatório Anual do Instituto de Capacitação e Pesquisa em Reforma Agrária, Chile, 1968).

Podemos dizer que a cultura do silêncio corresponde a um conjunto de representações e comportamentos ou \”modos de ser, pensar e expressar\”, que são consequência de uma estrutura de dominação secular na América Latina, espanhola e portuguesa, mas também de países considerados como pertencentes ao primeiro mundo. Ainda que de maneira desigual, ela condiciona tanto os opressores como os oprimidos. A cultura do silêncio é uma das dimensões da educação \”bancária\”, em um ambiente marcado pela falta de comunicação.

Quais são as formas em que essa cultura do silêncio sobrevive? Aqueles que foram historicamente oprimidos – nativos, negros, mulheres e trabalhadores – não foram eles reduzidos ao silêncio pelo discurso público hegemônico, que permanece classista, patriarcal, racista e neocolonialista?

Desde que meios tecnológicos – jornais, rádio, televisão, internet – passaram a ser mediadores incontornáveis da voz que se expressa e se faz ouvir no debate público, começaram também a existir políticas – explícitas ou não – relativas ao seu funcionamento, que se somaram às características históricas das sociedades e funcionam como políticas de silenciamento excludentes, possibilitando a perpetuação da cultura do silêncio não só no Brasil, como em outros lugares.

 

Educação como um bem público: um direito universal e um processo social de liberação

O pensamento neoliberal se reforça desde o início do século XXI. Aqueles que dominam a vida política e controlam a formação da opinião pública na mídia mundial fizeram reviver o difusionismo e a teoria da modernização. Novas formas de cultura do silêncio são disfarçadas de políticas de \”silenciamento\” e uma série de processos – alguns dos quais positivos no começo – tornaram-se instrumentos de opressão. Estes incluem:

  • pressões para considerar a educação como um serviço comercial regulamentado pelos princípios do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços;
  • tentativas para configurar um sistema de credenciamento (acreditação) mundial: em lugar de se comparar o que as instituições o ensino superior fazem com suas missões, definidas pelas próprias universidades, considera-se que a qualidade é sempre baseada nas práticas de alguns países, a maioria deles anglo-saxões, membros da OCDE;
  • insistência em incluir nas convenções sobre o reconhecimento de estudos e diplomas de ensino superior, ações que favoreçam os membros da Convenção de Lisboa (1997), que abrange a Europa, os Estados Unidos Canadá, Israel e Austrália;
  • tentativas de incentivar os países em desenvolvimento a aceitarem métodos de ação baseados no Processo de Bolonha, sem que se levem em conta suas necessidades culturais e sociais específicas;
  • aceitação, sem crítica, em todas as partes, da penetração dos cursos online (MOOC – massive open online courses), novamente ignorando as necessidades locais;
  • Imposição de critérios para definição de qualidade, inspirados em sistemas de classificação – \”rankings\”, destinados a destacar um número selecionado de instituições sediadas em países desenvolvidos ·.
  • que voltam hoje sob novas formas, baseiam-se, como dissemos, em um etnocentrismo ocidental, que considera como universais suas formO único modelo válido para a qualidade da educação (especialmente nas universidades) é o desenvolvido pelas principais instituições ocidentais.

 

Aqueles que destroem a educação como um bem público utilizam instrumentos ideológicos poderosos, além de ações concretas. O que buscam alcançar é substituir o objetivo de acesso universal a uma educação pertinente por uma concepção que visa à transformação da educação em mercadoria e instrumento de dominação. Essa ideologia impregna toda a mídia e mesmo organizações internacionais que abandonam qualquer ponto de vista crítico e aceitam que a comercialização esteja presente em todas as partes.

“Rethinking education. Towards a global commmon good”, um documento lançado em Paris em 1995, critica o conceito de bem público por duas alegações: a) não há unanimidade sobre a questão; b) essa concepção é individualista e baseia-se em princípios econômicos. O documento não leva em conta os esforços para associar a educação ao mundo do trabalho, que não pode se limitar aos interesses das empresas.  Sem crítica alguma, a privatização da educação é incentivada, com base, entre outros, na existência de escolas privadas baratas. É certo que elas existem, mas em que proporção, onde e em que condições? Os MOOC também são apresentados sem qualquer crítica à sua ação nos países em desenvolvimento.

A UNESCO sempre considerou a educação em todos os níveis como um direito humano, um direito de todos, o que fortaleceu a visão daqueles que veem a educação como um bem público. A base dessa abordagem é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que afirma em seu artigo 26:

”Toda pessoa tem direito à educação, a educação deve ser livre, pelo menos na educação básica e elementar, a educação básica é obrigatória, a educação técnica e profissional deve ser generalizada, os estudos de pós-graduação devem estar abertos à plena igualdade a todos, de acordo com o seu mérito”.

 

Esta declaração configura, com toda certeza, uma das fontes de inspiração para o pensamento de Paulo Freire. Ela recebeu um complemento importante, em 16 de dezembro de 1966, quando a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Artigo 13):

\”O ensino superior deve ser acessível a todos em plena igualdade, de acordo com a capacidade de cada um, por todos os meios apropriados e, em particular, pela introdução gradual da educação gratuita\” .

O Banco Mundial acrescentou o adjetivo \”global\” à noção de bem público no ensino superior no início deste século. Isso não significa que esse princípio se aplique em todos os lugares. O termo \”global\” surgiu em um momento em que o Banco Mundial, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização Mundial do Comércio defendiam que seus indicadores de qualidade – no processo de credenciamento – devem aplicar em todos os lugares. Ficou claro, no entanto, que esses indicadores eram os de um pequeno grupo de países, e a qualidade não deveria, segundo esta visão, estar relacionada à pertinência, ou seja, à realidade social, política e cultural do ensino superior e de suas missões específicas.

O segundo argumento vem do fato de que, segundo os autores do documento, o princípio do bem público é baseado em uma teoria socioeconômica individualista. Esse argumento também é falso. O conceito de bem público vem principalmente do direito público.

O serviço público se baseia em três princípios:

  • Igualdade: Toda pessoa tem direito a um serviço público sem discriminação.
  • Continuidade ou permanência: o serviço público deve responder constantemente às necessidades dos cidadãos.
  • Adaptabilidade ou \”flexibilidade\”: o serviço público deve ser \”reativo\” e evoluir de acordo com a existência de mudanças de interesse geral. Ele pode e deve seguir a evolução da sociedade.

O conceito de bem público não elimina a possibilidade de concessão, delegação ou autorização. O que é necessário é a existência de normas que atendam aos interesses de todos, em oposição ao individualismo, e a criação de mecanismos precisos controlados por autoridades legítimas.

                               —————————————————————                                         

A prevalência das ideias neoliberais e o retorno das políticas de silêncio, levando à exclusão, alimentaram as tentativas de desconstruir o trabalho de Freire no Brasil e em outros lugares. Desenvolvido num contexto marcado pela referência imediata à Guerra Fria no final dos anos 60 e início dos 70, defendendo o caráter público da educação, eliminando definições limitadas ao campo da educação de adultos, o pensamento de Freire continuou renovando-se até sua morte repentina em 1997. Ele se aplica ao conjunto do sistema educativo e permanece válido para combater a ignorância e para ajudar a libertar os oprimidos. Mais de vinte anos após a sua morte, o pensamento de Paulo Freire continua a iluminar o conhecimento sobre e o entendimento das sociedades contemporâneas, em particular daquelas que enfrentam enormes desafios produzidos pela ordem neoliberal.

[1] Essas questões foram discutidas em uma série de documentos, em particular em MA Rodrigues Dias (2017), \”A educação superior como público: perspectivas para o centenário da declaração de Córdoba\” disponível no site da Associação de Universidades do Grupo de Montevidéu   AUGM: ( https://bit.ly/2Ufq8bH ).

[2] – http://www.un.org/universal-declaration-human-rights

[3] -https: //www.ohchr.org/fr/professionalinterest/pages/cescr.aspx

                                                                                

                       

 

    REFERÊNCIAS BIBIOGRÁFICAS

 

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RODRIGUES DIAS, M. A. (2002)- Bases conceituais para a reconstrução da extensão – numero especial especial  Folha Médica, publicação da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina e SPDM – Sociedade Paulista para o Desenvolvimento da Medicina- v 121- nº 1- jan/fev/mar 2002- O texto pode igualmente ser encontrado em inglês e em português em  Researchgate (Marco Dias) et na página www.mardias.net no. 10 (página em fase de renovação).

 

ROGERS, E. (1971) et SHOEMAKER, FLOYD (1976) – \”Communication of Innovations” – New York, The Free Press.

 

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STRECK, Danilo; Ed. (2017). Dicionário Paulo Freire . 3e. ed. Belo Horizonte, MG; Autêntica. (Edição ingolesa: Paulo Freire Encyclopedia. (2012). NY,  Rowman & Littlefield Publishers).

 

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1 Comment

  1. Trecho do video do Programa de Formacao de Professores Alfabetizadores (Profa), do MEC, no qual especialistas como Emilia Ferreiro, Jose Eustaquio Romao, Vera Barreto e Vera Masagao comentam como o trabalho de Paulo Freire contribuiu para o desenvolvimento da teoria e da pratica da Alfabetizacao de Jovens e Adultos.

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