Em ato recente, o Conselho Federal de Medicina do Brasil oficializou a prática da telemedicina, que se contrapõe inteiramente ao modelo humano da profissão. É decisão que inverte o conceito de componente complementar, até então atribuído aos instrumentos diagnósticos e terapêuticos utilizados pelo médico para cuidar dos pacientes. O ser humano dedicado à medicina passa a ser visto como mero agente complementar da telemedicina. Está condenado à insignificância no universo da nova tecnologia. É uma descabida lógica que se dissemina, internacionalmente, em nome de falso progresso anunciado para iludir as populações no que concerne aos seus direitos fundamentais.
Delineia-se, assim, a confirmação da lúcida profecia do filósofo brasileiro Alceu de Amoroso Lima que, na década de 1960, afirmou numa de suas obras: \”Ou o homem humaniza as máquinas, ou as máquinas mecanizarão o homem\”. É um incontestável prenúncio de que a telemedicina alcançará a versão de um sistema robótico, capaz de mecanizar integralmente a assistência médica. A abrangência invasiva, com a qual está projetada, desumanizará a profissão.
Os recursos da tecnologia têm sido respeitados e incorporados aos procedimentos dos médicos. Com efeito, são conquistas que não devem ser rejeitadas nem subestimadas, desde que concebidas para colaborar com a qualidade do serviço da assistência à saúde, prestado pelo ser humano. É inadmissível que a inteligência artificial comande a atividade médica, profissão que jamais deverá ser exercida de forma eletrônica, como vem sendo programado.
Algumas instituições universitárias, de diferentes países, já começam a desencadear iniciativas com elevado potencial de reverter tão desumana desconstrução profissional. Baseiam-se em projetos elaborados com o intuito de reformular o currículo dos cursos destinados à formação dos profissionais da área de saúde, particularmente da medicina. Sua estratégia corresponde à incorporação das ciências humanas aos respectivos núcleos curriculares, na fase de graduação. A meta é reconstruir o horizonte humanitário, indispensável à visão de quem se diferencia para cuidar da assistência à saúde das pessoas. É o exemplo que as instituições brasileiras desse campo de conhecimento precisam seguir. Só assim atuarão em favor da medicina humana; do uso adequado dos avanços tecnológicos pertinentes; e contra a telemedicina, que começa a ser defendida como deplorável ideologia. É hora de defender o legado de Hipócrates contra técnicas hipócritas.
Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, presidente do Global Pediatric Education Consortium (Gpec)