Humanidade sem família

Dioclécio Campos Júnior*

 

A dialética da vida humana no planeta é deveras complexa. Inclui, de um lado, o progresso material contundente e, de outro, o atraso comportamental de gigantesca proporção. Ambos sem limite.

 

O homem já foi à lua. Colocou em órbita satélites artificiais e criou projetos espaciais para os próximos tempos. Desenvolveu escalas de progresso científico em todos os campos de conhecimento, mormente no âmbito da saúde. A possibilidade de deslocamento dos cidadãos no planeta cresce amplamente. A comunicação eletrônica adquire contorno universal, desfazendo as fronteiras que isolavam as populações. A produção industrial alcançou um grau de desenvolvimento robótico jamais imaginado, seja em quantidade, qualidade ou presteza. Os equipamentos inventados tornaram-se valiosos na sua dinâmica operacional. Aproxima-se a era do automatismo generalizado, envolvendo até mesmo os veículos de transporte.

Paradoxalmente, uma das práticas mais difundidas no século 21 é a violência. A insegurança de vida adquire dimensão alarmante. Os índices de homicídio configuram elevado grau da barbárie que prospera na sociedade humana. Puros atos primitivos e grotescos que põem em dúvida a eficácia dos avanços tecnológicos voltados para a segurança pública. A propósito, o progresso científico tem aumentado a expectativa de vida do indivíduo ao nascer, mas não impede que ele venha a ser violentamente eliminado antes que alcance a idade esperada.

O injustificável armamento bélico é ainda concebido como conquista em favor da paz mundial. Contudo, a crueldade da guerra só faz perpetuar o inferno dantesco. Extermina populações e devasta seus territórios, demolindo patrimônios e acervos históricos sem a mínima consideração para com o humanismo. Atentados terroristas convertem-se em práticas quase cotidianas, mesmo nos países aparentemente seguros, calmos e tranquilos. A ciência projeta viagem ao planeta Marte, mas não previne as tragédias que transformam a Terra em planeta Morte. São as chacinas tétricas e horripilantes que não podem ser previstas nem evitadas pelas modernas técnicas do século. A selvageria prospera de forma incontrolável.

A terrível realidade de hoje é uma das consequências do ilimitado crescimento econômico, que não se preocupa com as características da ordem social. Nunca houve comparável prosperidade material da espécie humana no Planeta, promovida com tamanha solidez operacional e em tempo recorde na história da espécie. Um dos fundamentos, que garantiu consistência às iniciativas desse porte, é a base científica que lhes dá a necessária sustentação. A ciência ganha assim o grande poder que sempre buscou, independentemente de valores morais e tradições éticas que davam estrutura à sociedade. Desmerecidos tais padrões no atual contexto, surgem nefastas fatalidades, de parâmetro assustador, como avalanches dos graves distúrbios comportamentais que se expandem, danificando as relações humanas, sem as quais o crescimento econômico carece de sentido.

O interesse subjacente ao império da economia ignora os estragos que seus projetos vêm produzindo no meio ambiente. Não apenas nos componentes físicos, químicos e biológicos, mas sobretudo nos sociais. Como resultado, a estrutura familiar passou a ser desfeita em ritmo acelerado. Pouco resta desse berço ambiental afetuoso e aconchegante que se configura como o sublime espaço para a educação bem autêntica das novas gerações. É como define o pensador Erick Fromm, em sua clássica obra Anatomia da Destrutividade Humana: “Os exemplos mais elementares que mostram o papel dos fatores ambientais sobre a personalidade são os que se referem à influência direta do meio ambiente sobre o crescimento do cérebro.”

As evidências científicas comprovam que o recém-nascido vem ao mundo com pleno direito de ser bem cuidado até atingir a sua maturidade. É um ente que merece acolhimento com a candura do amparo materno e a ternura da proteção social. Seu desenvolvimento cognitivo requer nutrição adequada e estimulação carinhosa para que as estruturas cerebrais possam ser diferenciadas. Com a família em decomposição, quase irreversível, não haverá como cumprir o sagrado papel que lhe cabe na formação da mente do novo ser humano, a ser inspirada nos valores morais e éticos de seus familiares. Desaparece assim a educação, cujo conceito clássico insubstituível é amamentar e instruir com doçura e carinho. Se o crescimento econômico continuar desmerecendo essa nobre missão social, o desastre planetário será cada vez mais grave.


* Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria e atual presidente do Global Pediatric Education Consortium (GPEC)

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