Roberto Bocaccio Piscitelli*
Artigo publicado no Correio Braziliense
A rejeição, pela Câmara dos Deputados, da denúncia de corrupção passiva contra o presidente da República expôs as vísceras da própria corrupção no Brasil. É bem verdade que ética, entre nós, nunca foi um traço marcante de personalidade. Houve época, inclusive, em que o estudo dessa disciplina nas escolas era quase uma heresia, ou, com muito boa vontade, apenas um exercício de diletantismo, algo inútil para a profissão ou para a vida. Nos tempos atuais, entretanto, há uma característica que foi se tornando cada vez mais transparente: todos os acordos, ou melhor, os negócios ou as negociatas são feitos de forma escancarada, sem nenhum pejo. Durante a memorável sessão a que nos referimos no início, o objeto e o preço das negociações foram definidos à luz das câmeras de televisão. E o pior é que esse mecanismo se tornou recorrente: vale para todo o tipo de proposição, desde a sua gestação até a aprovação final.
A configuração dos processos de cooptação se dá de diversas maneiras, mas principalmente por meio das famosas emendas e dos cargos públicos. Passa, porém, também pelos subsídios, pelas renúncias fiscais mais de R$ 100 bilhões anuais, só no âmbito da União, pelas renegociações de dívidas (nunca pagas) e pelos vergonhosos programas de recuperação de créditos, que chegam a zerar encargos de sonegadores, que nunca abandonam a condição de sonegadores, mas conseguem regularizar sua situação fiscal para continuarem a gozar dos favores das relações com a administração. São nossos representantes, mas representam os interesses dos poderosos, das mesmas elites que dominam a cena econômica e política desde o Brasil colônia.
São essas mesmas elites que se valem dos fantoches que nos cobram austeridade, dos quais faz parte uma corrente de colegas iluminados, que nos ensina que é preciso passar pelo purgatório para alcançar o paraíso, mesmo que a gente continue a habitar o inferno. Que moral tem um governo que nos impõe uma reforma previdenciária e não cobra e nunca cobrou uma dívida previdenciária que, em termos atualizados, está próxima de R$ 1 trilhão? Ou que, pelos seus próprios órgãos fiscalizadores, constata a existência de fraudes em 80% dos processos de benefícios examinados?
A absoluta falta de um projeto para o país nos leva a ter como única agenda uma sucessão de reformas, que atende exclusivamente os interesses das classes dominantes. Depois da trabalhista, a previdenciária; mais adiante, a tributária, tudo em nome da modernização, da eficiência, da competitividade, linguagem nos moldes da hipocrisia, da mistificação e da mediocridade que assolam o país. É bem provável, por exemplo, que venha por aí uma nova proposta de reforma tributária, aumentando as alíquotas da tabela progressiva do Imposto de Renda. Será que a par disso não seria mais justo e mais eficaz submeter todos os contribuintes e todos os rendimentos à mesma tributação, para que, pelo menos uma vez, não fossem apenas os assalariados, os servidores e os aposentados e pensionistas a pagar o preço dos ajustes?
Mas, francamente, muitas vezes me pergunto: todos esses representantes Judiciário e Ministério Público à parte, na sua maioria também egressos da elite não fazem parte das nossas escolhas? Ou será que a falta de ética é uma prerrogativa da classe política ou, para não ser injusto, dessa maioria (todo o mundo sabe como cada um vota), que controla todas as instituições estatais da República? Nossa própria apatia, comodismo, alienação e individualismo talvez respondam melhor por isso tudo. Se conhecêssemos melhor a história, e se a escola e a mídia nos tivessem tornado mais críticos e exigentes, possivelmente teríamos mais dúvidas e menos certezas sobre o que somos e sobre o que podemos, devemos e queremos ser.
*ROBERTO BOCACCIO PISCITELLI é Professor da Universidade de Brasília