Tecido social bordado em inovadora trama de inclusão

Revista Finep*

Com um Prêmio Finep no currículo, o Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI) mistura arte, ciência, informática e muitos toques de originalidade para melhorar a vida de comunidades carentes em Sergipe. A visão de futuro é ousada: transformar a pequena Santa Luzia do Itanhy, no sul do estado, em um polo de conhecimento que seja referência para todo o país.

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Diante do rio Piauí, que, para contrariar o nome, banha Sergipe em cidades como Santa Luzia do Itanhy, é servida no almoço uma gene¬rosa posta de arabaiana. Para contrariar agora a proximidade com o rio, este peixe – cuja consistência lembra o atum – é encontrado no oceano. Talvez por isso o simples e receptivo restaurante à beira do rio, o único aberto às 14 horas de um dia de semana naquela região, se chame Brisa do Mar. Puro vento de paradoxo. O engenheiro Saulo Barretto, coordenador do Instituto de Pesquisas em Tecnologia e Inovação (IPTI), organização social que venceu o Prêmio Finep, não dispensa tal receita gastronômica de avessos sempre que chama alguém para conhecer a cidade. Ora, este clima de contrariedades ao óbvio seria mero acaso se ali, naquele pequeno município de pouco mais de 13 mil habitantes, não fosse justamente localizada a instituição – que mistura tecnologia social, ciência, artes e programação digital num lugar aparentemente pouco convidativo, com um dos IDHs mais baixos do país. “Eu discordo de que inovação é exclusiva de grandes centros. Escolhemos educação, saúde e economia criativa como os eixos de atuação dos nossos projetos. Santa Luzia, com graves problemas sociais, mas atraente, com população disposta a crescer e de fácil acesso, pode representar um modelo a ser replicado”, explica.

Fundado em 2003, o IPTI é uma instituição de ciência, tecnologia e inovação, priva¬da, com fins não econômicos, “cujo objetivo visa desenvolver soluções integradas entre tecnologia e processos humanos”. É assim que se apresenta em seu portal, mas a autêntica revolução que propôs e ainda se propõe na pequena Santa Luzia é mui¬to mais profunda do que o espaço que uma definição institucional comporta. Se São Paulo é o avesso do avesso, Saulo decidiu por um terceiro avesso quando transferiu o IPTI da metrópole paulista para Sergipe, menor dos estados brasileiros. O avesso final foi a opção por fixar residência e braços na citada região ainda desconhecida, com povoados pobres historicamente conectados pela pesca, separados por cerca de uma hora de carro para quem parte da capital, Acaraju, rumo ao sul. “Meu sonho é de que Santa Luzia do Itanhy se transforme num grande vulcão de conhecimento, de soluções em tecnologias sociais, e que compartilhe o conhecimento com pessoas de outros lugares. No fim, a ideia é que haja retorno financeiro para todos que participarem desse processo”, destaca.

Artesanato “chic”

Depois do almoço diante do rio, o carro parte para visitar cada projeto que se espalha pelas comunidades adjacentes. Diante de um amplo galpão-oficina, quem recebe os visitantes estampando um largo sorriso é Felícia Souza, artesã que lidera o projeto “Cultura em Foco”, um dos chamarizes do IPTI. Ao seu lado, as amigas e fiéis escudeiras, mãe e filha, Clementina e Cristiane, completam as honras da casa. As três protagonizam a iniciativa que visa valorizar o patrimônio imaterial brasileiro vinculado ao artesanato feito à mão e à profissionalização do ofício de artesão. A proposta não versa por qualquer sombra de timidez: as técnicas por vezes transmitidas de geração para geração no domínio das famílias, aqui, estão consorciadas com estratégias de design e marketing. Eis aí o pulo do gato para agregar capacidade de penetração em merca¬dos sofisticados a uma produção em si já valiosa luminárias feitas à base de fibra de dendê, mantas de fuxico, cortinas, esteiras e o que mais puder ser trançado e bordado. Detalhe fundamental: tudo feito à mão. “A palavra artesanato é por ela mesma sinônimo de ‘vou pagar pouco por isso’”, ironiza Saulo, ressaltando que a brincadeira de sua fala é muito séria. “Precisamos valorizar o que é nosso”, completa.

Felícia segue o fio desta alta costura: “meu sonho era ser artesã e conquistar reconhecimento para o meu trabalho, que não é algo simples”, esclarece. Não tardou para a marca “Fellicia” ser criada, e é por este negócio social que se viabiliza a distribuição dos produtos confeccionados. No bojo do conceito dos programas do IPTI, criar e replicar modelo para gerar negócios é degrau fundamental e que não deve ser pula¬do. Nesta orientação, comunidades com tradição em artesanato que desejem aperfeiçoar seus processos são constantemente incluídas e fazem a espiral apenas crescer. O trançado desse tecido social de valorização da cultura secular de nosso povo já envolve também associações de municípios como Poço Redondo (SE), Poço Verde (SE), Piranhas (AL) e Pão de Açúcar (AL).

Mas as ações não param aí. O jovem Flavio Severo, de 23 anos, não economiza ao falar do “Arte com Ciência”, outro braço do IPTI, este diretamente financiado pela Finep (cerca de R$ 1 milhão). O objetivo do projeto é qualificar alunos e professores do ensino médio a produzirem objetos educacionais em formato multimídia para compartilhamento na rede social Guigoh. O nome da plataforma alude a um macaquinho típico da região de Santa Luzia, que grita alto como se fosse ave, parte de uma curiosa estratégia de conquista territorial. A conquista do instituto ao misturar arte com ciência é menos barulhenta, mas o efeito gera resultado igualmente impactante: mais de 130 objetos educacionais, 14 escolas sergipanas atendidas em 11 municípios, três curtas produzidos. E o que vale de verdade: pessoas diretamente atingidas. São mais de 500 alunos envolvidos no processo.

“O Arte com Ciência foi o maior aprendizado da minha vida, além do meu primeiro emprego”, afirma Flavio, ex-aluno e atualmente instrutor e multiplicador do projeto. Imagine um vídeo didático em que os próprios alunos e professores encenam temas históricos, como a Revolução Francesa, acrescentando o componente audiovisual dominante em tempos de multiconexão aos tradicionais giz e quadro-negro? É assim mesmo que a coisa funciona. Os estudantes aprendem a criar, registrar, editar e produzir filmetes, além de fotos, podcasts, textos de natureza educacional. Depois da revisão e aprovação, tudo sobe para o Guigoh e é aberta a oportunidade de compartilhamento e multiplicação. Quem demonstra disponibilidade e potencial recebe então uma espécie de treinamento para dar sequência a esta cadeia, ampliando o alcance. Algumas conquistas já foram contabilizadas: o curta-metragem Visage, concebido pelo projeto, foi exibido num festival cubano de cinema. Além disso, o Liceu Éduard Herriot, em Lyon, França, transformou-se em parceiro.

Lógica, arte e moda

A possibilidade de propagação de valores é o que faz o professor ThiersGarretti, do Instituto Federal do Sergipe, rumar de Aracaju para Santa Luzia uma vez por semana (no começo, eram três), para liderar o projeto “CLOC” (Criatividade-Lógica-Oportunidade-Crescimento), cujo objetivo é a estruturação de um núcleo altamente qualificado de programação computacional avançada, com alunos pinçados em comunidades carentes da região. Os aprendizes selecionados para o “CLOC” desenvolvem raciocínio lógico e, na medida em que passam para outras etapas, recebem aulas de Scratch, Java Script, HTML 5 e CSS, até chegarem ao nível mais avançado – Banco de Dados e PHP –, ponto final do ciclo de cursos. O diferencial do “CLOC”, a partir de um bem encadeado esquema de pirâmide, é que os primeiros alunos passam a ser professores, capturando outros mais jovens que tenham aptidão para trabalhar com informática. “Daqui a pouco, eu saio dos projetos e a primeira turma treinada por mim assume o comando”, conta Thiers.

Ivia Souza, de 15 anos, é uma das estudantes do primeiro módulo. “Eu tive o apoio dos meus pais para vir, mas é um desafio convencer todos os meninos do colégio de que eles podem crescer através do projeto. Em muitos casos, as próprias famílias não dão força”, analisa a menina, que mora na comunidade da Rua da Palha. Logo que vencem a primeira fase do curso, os novatos já são incentivados a buscar outros aprendizes, em povoados como Cajazeiras, Areia Branca, Boquim, Crasto. “No geral, entram 30, 40, e, naturalmente, este número cai até chegarmos naqueles que de fato têm aptidão e querem de verdade ingressar no mercado com qualidade”, arremata Saulo. A ideia é que os estudantes consigam criar seus próprios negócios e disseminar conhecimento. Neste momento, o time de novos programadores em estágio mais avançado já trabalha na finalização de um aplicativo.

Os projetos do IPTI, portanto, surgem como uma espécie de provocação, modelo no qual se identifica um problema social e são desenvolvidas soluções em parceria com a própria comunidade. Foi a partir de tal espírito que também surgiu em Santa Luzia a biblioteca Luminescência, especializada em artes visuais, e o projeto “Arte Naturalista”, cuja intenção inicial era reunir adolescentes entre 12 e 17 anos que tivessem afinidade com o desenho. Retratar o ecossistema do mangue proporcionou a algumas cabeças curiosas o aprendizado de técnicas de aquarela, nanquim e grafite. Mais que isso: a descoberta da arte como profissão. A iniciativa então foi ainda mais longe e possibilitou a criação da marca de roupas “Casa do Cacete”, que passou a estampar os desenhos.

Não tardou para pintar uma parceria empreendedora no mundo da moda: a Morena Rosa se associou à Casa, abraçando o processo de continuidade e legado que o IPTI procurava na construção do padrão de negócio. “Não interessavam os que não se preocupassem com a integração social que norteia o IPTI”, destaca Saulo. Com a sociedade formada no segundo semestre de 2015, os quatro ilustradores da Casa do Cacete (Genisson Cardozo, João Hungria, Matheus Pereira e Bira Bilino) produziram desenhos que estamparão as peças da coleção de inverno 2017 da grife. “Pelo mundo da arte, consegui enxergar um mundo muito maior do que o povoado do Crasto, que era só o que eu tinha no meu horizonte”, comemora Matheus.

SYNAPSE

Diz a biologia que sinapse (com i) é a região localizada entre neurônios onde agem os neurotransmissores (mediadores químicos), transmitindo o impulso nervoso de um neurônio a outro, ou de um neurônio para uma célula muscular ou glandular. Cereja do sundae do IPTI atualmente, “Synapse” (com y) pega emprestado um dos termos que é vedete nos vestibulares Brasil afora para denominar o projeto que busca desenvolver meios capazes de melhorar a alfabetização, em português e matemática, de alunos de escolas públicas, com base nos estudos das neurociências e na participação fundamental dos professores como construtores do conhecimento.

Algumas conquistas já podem ser comemoradas: 1) caderno pedagógico do 1º ano do ensino fundamental sistematizado e finalizado; 2) formação de núcleo de professores replicadores; 3) software para tablet para utilização dos alunos em sala de aula. O Synapse está sendo replicado em oito municípios em 2016 – Santa Luzia do Itanhy e mais sete localizados no baixo São Francisco –, o que totaliza 106 escolas (municipais e estaduais). O plano é de que em 2017 a tecnologia social seja transferida para mais 88 colégios, dobrando a quantidade de cidades atingidas.

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