“Novo” (velhíssimo) Mais Educação – O MEC não sabe diagnosticar, muito menos prevenir

Pedro Demo*

A 10 de outubro o Ministro da Educação reforma o Mais Educação , programa controverso em todos os sentidos, em especial naquilo em que teria sua maior importância: puxar a implantação de Escolas Integrais (EI) (de tempo integral) no país. A razão sempre foi flagrante: passar para oito horas uma escola horrível, vai ficar 2 vezes horrível. De fato, de que adianta o estudante aprender xadrez, se continua não sabendo matemática? Xadrez é boa ideia, certamente, mas matemática é um dos conhecimentos mais importantes para efeitos emancipatórios na saga da emancipação modernista. Pode-se questionar a esta, claro (emancipação não pode ser exclusivamente eurocêntrica), em suas ambiguidades notórias (além de eurocêntrica, colonialista, insustentável, machista, destrutiva…), mas seu “espírito” é que importa – a maneira penetrante e desconstrutiva de “ler a realidade”, que permite ao oprimido não esperar do opressor a libertação. Este tipo de conhecimento confrontador, que se recusa a aceitar as coisas como estão ou como se veem, importa sumamente para os estudantes, no sentido de lhes abrir portas para alternativas de vida.

Neste texto, busco mostrar que, primeiro, o MEC não tem sabido diagnosticar, apesar de ser a própria fábrica dos dados, e, segundo, muito menos prevenir, ou seja, montar políticas que estejam à altura dos desafios sinalizados pelos dados.

 

I. DIAGNÓSTICO SONSO

A Portaria começa com um “diagnóstico”, em seus “Considerandos”: 24% das escolas do ensino fundamental, anos iniciais, não alcançaram as metas do Ideb de 2015; 49% delas, anos finais, não atingiram as metas de 2015; o Brasil não alcançou a meta do Ideb nos anos finais em 2013 e 2015… É um diagnóstico míope, sumário, farsante, tomando como referência o incômodo imediatista dos resultados do Ideb de 2015, esquecendo a série histórica desde 1995 (ou do Ideb desde 2005), que indica uma gravidade extremamente mais dramática: enquanto nos anos iniciais ainda temos algum tom de subida, nos anos finais é de queda bem visível e dentro do mesmo espaço (ensino fundamental), que se torna uma “tragédia” (assim chamou o Ministro) no ensino médio. Esta visão curta leva o Ministério a crer que se trata de um percalço eventual, quando é um câncer já em adiantada putrefação. Os dados disseminam a percepção de que o sistema de ensino é um engodo oficializado, mantido à custa de progressão automática (implantada pelo próprio Pnaic na alfabetização, quando dá até três anos e que não se cumprem minimamente, como atesta ANA) (Demo, 2016), sendo totalmente impróprio postular que a escola pública que temos é inclusiva, equalizante, garantia de uma “pátria educadora” ou que valeria a pena transformar este descalabro em EI. Este mesmo erro de diagnóstico estragou o PNE, tornando-o uma aposta do mundo da lua (Demo, 2012; 2016a), ao não questionar o sistema atual de ensino, na escola e na universidade.

Tomando os 20 anos (desde 1995, desde o Governo FHC), o sistema atual de ensino persistentemente dá sinais de esgotamento, em especial em matemática, o que se consuma dantescamente no ensino médio. O Ministério, porém, mantém-se impávido em seu olhar de cima, da lua, de onde não vê nada. A própria proposta recente do ensino médio (EM), bombardeada furiosamente por muitos, comete o mesmo erro de diagnóstico, acrescentando outro também muito inconsequente: acha que o currículo é o atrapalho central, quando é apenas um deles e nem o principal. O que os dados estão a clamar é que na escola não se aprende minimamente, ou, pior, cada vez menos. Não se busca escrutinar o problema, mantendo-se a crendice de que o sistema está adequado, faltando reformas eventuais para ajustar o percurso. Não se quer ver que este percurso leva ao abismo, é suicida. Se houvesse diagnóstico mínimo, não se teria inventado o Mais Educação. Muito menos o Novo Mais Educação, porque alongar uma escola inútil não faz sentido. Seria como, para abrigar mais gente na cidade, duplicar as favelas, já que estas são parte da paisagem desde muito.

Quando pretendemos cuidar da aprendizagem, como consta no primeiro considerando (desenvolvimento da capacidade de aprender), cumpre determinar quais políticas poderiam fazer isso, sobretudo se este sistema é apto. Qualquer diagnóstico, mesmo sumário, vai concluir que este sistema não tem qualquer condição. A LDB determina a progressiva ampliação do período de permanência da escola, algo que se pode muito bem fundamentar pedagógica e também socialmente, mas sem cair na cilada de ampliar o lado inútil da escola. Lembremos que, sob este (des)argumento ampliamos o ensino fundamental de 8 para 9 anos, apenas atrapalhando ainda mais a vida do estudante – não é possível mostrar, nos dados que temos, qual teria sido o proveito desta ampliação, considerando-se que os anos finais estão na mesma direção da tragédia do EM. Olhando o cenário, o que temos na escola é aula, prova e repasse – sempre mais. Aprendizagem é coisa eventual, rumando para sua extinção. Quando apenas 9% dos estudantes do EM aprendem matemática, além de ser um resultado que deveria capotar a República, pois indica uma escola que o estudante deveria evitar, sugere haver algo de muito errado na formação docente; o licenciado em matemática não está dando conta do recado, não por culpa (é parte do mesmo sistema insano instrucionista), mas porque não tem condições profissionais mínimas (tanto de formação, quanto de condições de trabalho). Não se pode traçar correlação linear (mecanicista) entre desempenho docente e discente, por duas razões pelo menos: porque correlação atesta associação de variáveis, não causação; porque aprendizagem se dá na mente do estudante, não na aula do professor, que é fator externo (mediador). Sobra, porém, a “associação”, que é terrível – indica que o licenciado, não tendo aprendido, se mete a ensinar.

Qualquer diagnóstico comezinho chegaria à conclusão que mudar a escola com a mesma estruturação docente e pedagógica não leva a nada. O Pnaic comete este desatino: acha que vai salvar a alfabetização com o mesmo alfabetizador, a mesma escola, a mesma aula… Para enrolar os incautos, introduz a noção de “alfabetização na idade certa” e que é limitada em até três anos, quando não existe a criança que precisa de três anos (quem precisa é uma escola analfabeta), até porque alfabetização – numa categorização mais iluminada – dura a vida toda. Quando se começa educação científica no pré-escolar (Linn & Eylon, 2011. Slotta & Linn, 2009), seria tolo arguir que a idade está errada. O problema não é de idade certa, mas de “dose certa” – o professor precisa saber calibrar como trabalhar uma criança de 4 anos ou de 6. Ao invés de idade certa, precisamos acertar no professor alfabetizador, na escola, na pedagogia etc. A proposta do EM por Medida Provisória encena o mesmo disparate: vamos mudar a escola com o mesmo professor, a mesma aula, a mesma pedagogia, apenas retocando o currículo…

Estamos cansando disso – nenhum governo é capaz de encarar o câncer; monta programas para fazer boa figura, numa sucessão de amadorismos inconsequentes, como se tudo andasse a contento, precisando de ajustes localizados. Quando o próprio Ministro reconhece que o Ideb de 2015 retrata uma tragédia, o mínimo que se espera é que saiba encarar a “tragédia”. Enquanto reconhece a tragédia, usa água benta para lidar com o câncer.

 

II. EXPECTATIVAS LUNÁTICAS

O programa foca agora língua portuguesa e matemática, junto com outras atividades circundantes (artes, cultura, esporte e lazer) (Art. 1o§ único). Ao mesmo tempo que se busca “alfabetização, ampliação do letramento e melhoria do desempenho em língua portuguesa e matemática”, quer-se também “redução do abandono, da reprovação, da distorção idade/ano” (Art. 2o). Nas Diretrizes (Art. 4o) aparecem oito promessas: i) integrar o Programa à política educacional da rede de ensino; ii) integrar as atividades ao projeto político pedagógico da escola; iii) priorizar os alunos e as escolas de regiões mais vulneráveis; iv) priorizar os alunos com maiores dificuldades de aprendizagem; v) priorizar as escolas com piores indicadores educacionais; vi) pactuar metas entre o MEC, os entes federados e as escola participantes; vii) monitorar e avaliar periodicamente a execução e os resultados do Programa; viii) estimular a cooperação entre União, estados, Distrito Federal e municípios.

Esta ladainha cabe, certamente, mas encobre problemas cabeludos. O projeto político pedagógico é, quase sempre, ficção; priorizar escolas mais vulneráveis é piedoso, mas certamente a escola que temos nunca fará isso; também não vai salvar alunos com maiores dificuldades, porque temos uma escola pobre para o pobre; priorizar escolas com piores indicadores é o que todos queremos, mas isto pressupõe explodir este sistema. Além do diagnóstico amador, esconde-se que para equalizar a educação não basta a mesma oportunidade; cumpre garantir resultados no mínimo iguais (isto apenas empata), ou, mais realistamente, superiores para os mais necessitados. Estamos pressupondo – ardilosamente – que esta escola é capaz de incluir, emancipar, mudar a vida do estudante mais pobre, quando se dá flagrantemente o contrário. Se quisermos honestamente uma escola inclusiva, teria de ser outra, radicalmente outra. Este era o sentido da EI que estava na cabeça de Darcy Ribeiro e Paulo Freire – uma escola “superior” para quem mais precisa dela.

Tomemos um exemplo diagnóstico intrigante; os dados sugerem um desencontro entre anos iniciais e finais, já que no primeiro caso, persiste algum viés de subida (em especial em matemática), enquanto no segundo o viés é de queda alarmante. No primeiro caso, temos como atores fundamentais os pedagogos, no segundo os licenciados. Em geral se supõe que pedagogos não se encantam com matemática, mas é sua matemática que, mesmo com resultados muito inaceitáveis, pelo menos sobe. Já o licenciado em matemática, que deveria ter condições mais garantidas de desempenho escolar, é um desastre redondo. Por outra, a boa figura do pedagogo fica muito arranhada com os resultados de ANA (Demo, 2016) – a proposta de alfabetização é uma quimera, marcada pela progressão automática fraudulenta. Assim, parece clarividente que a docência na escola precisa ser questionada terminantemente. A aula que aí se oferece não traz nada de útil. O “normal” é não aprender, à revelia da aula. Podemos culpar o estudante, sua família, a sociedade, o capitalismo, mas há que enxergar que a docência, a escola, o sistema de ensino são lunáticos, por completo.

Aparece no Art. 6o, inciso III – “colaborar com a qualificação e a capacitação de docentes, técnicos, gestores e outros profissionais, em parceria com o MEC” – um blábláblá costumeiro, mas totalmente vazio. Assume-se – ineptamente – que o atual sistema de qualificação e capacitação seja adequado. Ora, pedagogia e licenciatura são cursos degradados nas universidades (em especial em áreas estratégicas da licenciatura – física, química, matemática), inoperantes em termos de profissionalização mínima (alfabetizadores não sabem alfabetizar – são eles que precisam de até três anos; licenciados que não aprenderam, mas se metem a ensinar), desestimulantes em termos de formação. Certamente, o Programa não iria consertar este desaforo, mas é inacreditável que faça de conta que o problema não exista. Professores, quando frequentam semana pedagógica ou mesmo “especializações”, correm o risco de voltarem piores, porque são tratados do modo mais instrucionista medieval. Olhem-se dados do Distrito Federal – o aprendizado adequado de matemática no EM em 2013 foi de 17% (ainda assim, o mais elevado do país), que foi de 31.5% em 1995 – indicando um descalabro sem nome. No entanto, uma instituição de formação permanente dos docentes existe (EAPE); oferecendo sistematicamente cursos aos docentes, consegue ser contraproducente – os estudantes aprendem menos, enquanto os docentes parecem desaprender nos “cursos”.

 

III. APRENDER

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O sistema de ensino, puxado por políticas institucionais caducas, empulha os estudantes de aulas, provas e repasses, evitando, assim, que aprendam. Aprender até pode acontecer, mas é por acaso. Numa escola feita para professor dar aula, não para o estudante aprender, o ideal seria mesmo uma escola sem alunos – estes atrapalham. A neurociência acentua o lado autoral da aprendizagem (Demo, 2015), por conta da estruturação biológica da mente que não é máquina passiva, absorvente – ao contrário, funciona de dentro, autoralmente – enquanto não emerge a desenvoltura autoral, não ocorre aprendizagem, no máximo memorização e coisas do gênero. À revelia disso, o sistema de ensino encalhou na expectativa de que aula “causa” aprendizagem – esta é decorrência daquela, pondo o estudante como vítima. Ensino nas escolas tem se tornado processo de vitimização dos estudantes que podem facilmente passar 12 anos nela (até o fim do EM) sem aprender quase nada – teriam 12 anos falsos de estudo. Professor é figura importantíssima, na posição de mediação (Demo, 2016b), pode contribuir muito com a aprendizagem do estudante, mas é este que precisa estudar – o estudante na escola não estuda; frequenta aula, faz prova, absorve repasse. Não funciona. É uma “tragédia”.

A pergunta é por que o MEC se nega a reconhecer que a rota deste sistema de ensino é suicida? Por exemplo, a questão docente é um tormento no país – professores muito mal formados, sem qualificação permanente em serviço minimamente decente, socioeconomicamente rebaixados, com condições em geral muito ruins de trabalho e com desempenho escolar abaixo da crítica (sem culpa). Sabemos, porém, que qualquer programa que busque alguma mudança na escola, passa fatalmente pelo professor. Mudança escolar é mudança docente, claramente. No entanto, o MEC busca mudar sem mudar a docência; mantém a mesma aula completamente inútil; curte mesma pedagogia instrucionista medieval. Não estamos advogando aqui nenhum “ismo”, apenas o direito do estudante de aprender – é isto que está na legislação e precisa ser garantido. A escola é o avesso disso, cada vez mais. Todos os sistemas que avançam bem na aprendizagem dos estudantes começaram pelo professor, a exemplo da Finlândia (Darling-Hammond & Lieberman, 2012). Outros componentes são também imprescindíveis, ainda mais numa EI onde o estudante passa 8 horas ou algo assim, também a participação comunitária e estudantil, dos pais, mas o professor pode viabilizar ou atrapalhar por completo. 

Ao mesmo tempo, não se pode mais falar de qualificação/capacitação docente, postulando que isto provenha do sistema atual sem mais. Há que invectivar a universidade frontalmente, porque seus cursos são também uma tragédia. Enquanto sua elite (mestres e doutores) se formam via pesquisa fundamentalmente, os graduandos são castigados com o pior instrucionismo imaginável, resultando em profissionais sem qualquer condição profissional. Ao mesmo tempo, não se preenchem as lacunas em licenciaturas estratégicas, uma obrigação do MEC. Quando se tenta fazer algo, incidimos em dois primarismos: oferecemos apoios que são uma provocação ou acinte (como no Programa “Quero ser Professor, Quero ser Cientista” – http://www.mundodastribos.com/programa-%E2%80%9Cquero-ser-professor-quero-ser-cientista%E2%80%9D-entenda.html ), com bolsa de R$ 150,00 (2104); achamos que os cursos atuais formam “cientistas” ou algo parecido! Que sentido haveria em termos mais “físicos” licenciados que não aprenderam e querem ensinar? A universidade não tem o monopólio da “culpa” – nunca é boa ideia achar culpados – pois a própria escola pode atrapalhar muito, seja oferecendo condições muito decaídas de trabalho, seja mantendo um fluxo escolar degradado etc.

Precisamos, pois, questionar Programas feitos a facão, só para dar a entender que o governo se mexe, quando não sabe para aonde vai.

 

CONCLUSÃO

A escola precisa ser reinventada, em nome da importância que ainda lhe creditamos em termos de equalização de oportunidades (que não bastam, porém) (Boykin & Noguera, 2011) e de qualificação da democracia/república. O que temos não é aceitável, nem mesmo na esfera privada. No Ideb de 2015, repetiu-se a “tragédia” de 2013: a escola privada não atingiu a meta em nenhum caso (anos iniciais, finais, EM), caindo no EM desde 2013. Seria, neste sentido, a pior escola em termos de crise pedagógica, precisamente aquela mais conteudista, instrucionista, “auleira” (ambiente de cursinho). Assim, há indícios mais que suficientes para entender que o atual sistema de ensino é uma monumental fraude oficializada.

Programas que se dizem novos, como o “Novo” Mais Educação, teriam que levar em conta que não é possível inovar dentro da equação atual. Há que sair dela.


[1] Portaria No 1.144 de 10/10/2016 – Institui o Programa Novo Mais Educação. http://integraldf.blogspot.com.br/2016/10/portaria-institui-o-programa-novo-mais.html 


*Professor emérito da Universidade de Brasília (UnB). 

REFERÊNCIAS

BOYKIN, A.W. & NOGUERA, P. 2011. Creating the OpportunitytoLearn: Movingfromresearchtopracticeto close achievement gap. ASCD, Washington.

DARLING-HAMMOND, L. & LIEBERMAN, A. (Eds.). 2012. TeacherEducationaround the World – Changing policies andpractices. Routledge, London.

DEMO, P. 2012. O mais importante da educação importante. Atlas, São Paulo.

DEMO, P. 2015. Aprender como autor. Atlas, São Paulo.

DEMO, P. 2016. Alfabetização é um drama – https://docs.google.com/document/d/1OwjP2E46MS4kIaxQXn4zMVIXWf0qZInZ5T-oipTiMTo/pub 

DEMO, P. 2016a. PNE – Uma visão crítica (e-book). Papirus, Campinas.

DEMO, P. 2016b. Papel Docente – https://docs.google.com/document/d/1NLMbBeyJYq8RvxweAWtD3cMrU4zQNueVoJ54Qi9kD10/pub  

LINN, M.C. & EYLON. B.-S. 2011. Science Learning andInstruction – Takingadvantageoftechnologytopromoteknowledgeintegration. Routledge, N.Y.

SLOTTA, J.D. & LINN, M.C. 2009. Wise Science – Web-basedinquiry in the classroom. TeachersCollege Press, N.Y.

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