Júri Simulado sobre questão espacial

Artigo de José Monserrat Filho, vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), para o Jornal da Ciência –   

O Direito Espacial em ação gera debates instigantes, instrutivos e esclarecedores.

O Instituto Internacional de Direito Espacial, com sede na Holanda, promove anualmente, desde 1992, um Júri Simulado, sempre como evento marcante do Congresso Internacional de Astronáutica – este ano, programado para Bremen, Alemanha, de 1º a 5 de outubro de 2018.

O Instituto foi fundado em 1960, três anos após o início da Era Espacial com o lançamento do Sputnik-1 pela ex-URSS em 4 de outubro de 1957.

O caso de 2018 ocorre em futuro relativamente próximo. As ideias e visões de seus autores são mantidas. Algumas parecem polêmicas. ‘Os Estados em conflito, formalmente, são Neapilia (requerente) e Kalvion (respondente). Cada país responde por suas atividades espaciais nacionais, públicas ou privadas, conforme o Artigo 6º do Tratado do Espaço, a Carta Magna do Espaço.

Em conflito estão também as empresas privadas Salus Patriae ad Astra Corporation (SalPA Corp.), e a SIENAR Industries, originadas, respectivamente, em Neapilia e em Kalvion, e cujos interesses industriais e comerciais acabam se tornando incompatíveis.

Graças às suas reservas nacionais de petróleo e gás, Neapilia logrou forte crescimento econômico. Com isto, pôde investir em atividades e tecnologias espaciais, concentrando-se, em especial, na criação de um assentamento humano em Marte. Para tanto, em 2040 lançou uma Estação Espacial Civil para orbitar Marte, a TheosAres.

Kalvion, por sua vez, ex-país em desenvolvimento, cresceu consistentemente desde 2025 e também investiu em programas espaciais, civis e militares. Mas, tradicional importador de petróleo e gás, que lhe custavam muito caro, sentiu-se impelido a buscar energias alternativas fora da Terra.

Até 2045, a população da Terra chegara a 9,2 bilhões. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), as fontes renováveis de energia deixariam de atender às necessidades crescentes da humanidade. Durante décadas, o excesso de população e o aquecimento global danificaram o meio ambiente do planeta, tornando-o hostil à agricultura. A falta de recursos provocou grandes migrações e agitação social em vários países. A Organização para a Agricultura e a Alimentação da ONU preparou a comunidade mundial para uma crise alimentar em resposta aos sinais claros de que as reservas naturais da Terra haviam chegado a níveis críticos.

Desde 2035, a ONU passou a discutir possíveis soluções coletivas. Como nenhum acordo foi alcançado, alguns Estados optaram pela busca em separado de soluções alternativas. (Penso que essa decisão é um erro clamoroso. Soluções separadas e individuais dificilmente têm êxito. Vivemos num mundo globalizado. As oportunidades de cooperação internacional são inesgotáveis).

A partir de 2030, a explosão populacional no pequeno território de Neapilia gerara distúrbios sociais generalizados. O país já não tinha fundos para financiar novos programas espaciais. Sua prioridade agora era atender às necessidades de sua própria população. Foi então que Neapilia lançou nova política espacial, sustentando que a exploração do espaço poderia ajudar a superar a superpopulação global e nacional, bem como a crise de recursos da Terra. A nova política convidava o setor privado a apresentar propostas para enfrentar o desafio.

A SalPA Corp., poderosa empresa privada sediada em Neapilia, com interesse em tecnologia inovadora, sobretudo no campo da exploração e uso do espaço, entrou na corrida desenvolvendo ambiciosa proposta: tornar acessíveis aos seres humanos os recursos hídricos de Marte.

Há muito, Marte é considerado o primeiro destino potencial para o reassentamento humano, graças às condições de sua superfície e à existência de água em seus polos e subsuperfície. Sua temperatura média é de cerca de –85ºF (–65ºC). Daí ser visto como o único corpo celeste acessível no sistema Solar, além da própria Terra, que, aliás, fica-lhe relativamente próxima. E o melhor: com a tecnologia de propulsão já dominada por Neapilia, a viagem a Marte é bem mais facilitada.

Em 2046, a SalPA Corp. inventou algo inusitado: a OptronRay, um par de espelhos, separados por 180º, orbita os polos de Marte e reflete o calor do Sol. Isto aquece a camada de gelo seco existente (a calota de CO2). O gelo derrete e irriga grande área do planeta. Surgem as condições necessárias para o assentamento humano em Marte. Testado, o novo sistema tecnológico confirmou sua viabilidade no final de 2053. Ao mesmo tempo, a SalPA Corp. desenvolveu Módulos Atmosféricos Habitáveis (HAMs), a fim de sustentar a vida e a agricultura autônoma nas novas condições atmosféricas e nas áreas úmidas de Marte.

A SalPA Corp. produziu a seguir espelhos OptronRay maiores, para instalá-las até 2060, e uma série de 50 espelhos até 2070 – os chamados ’50 Raios da SalPA’. O plano era aquecer a atmosfera de Marte para que os primeiros HAMs fossem estabelecidos até 2063, quando quantidades suficientes de água líquida seriam liberadas na superfície do planeta vermelho. Todas as tecnologias deviam ser projetadas, fabricadas e apropriadas pela própria SalPA Corp, com patentes internacionais. A empresa abriu para investidores estrangeiros, públicos e privados, a compra direta de licenças, da SalPA Corp., para usar HAMs na criação de assentamentos autônomos em Marte. Estimava-se que as taxas de licenciamento mais do que recuperariam os custos do desenvolvimento tecnológico e da implantação dos espelhos orbitais. Neapilia logo entrou nos negócios da OptronRay e da HAM: comprou com fundos públicos 49% de suas ações.

Em 2050, lançada a primeira missão da TheosAres, Neapilia informou o Secretário Geral da ONU sobre o lançamento do veículo espacial de propriedade da SalPA Corp. e por ela operado, como a ‘missão pacífica de explorar Marte’.

Em 2040, o conflito começara a se instalar. Kalvion, ante sua carência energética, decidira desenvolver amplo programa espacial para procurar, explorar e extrair recursos naturais em outros corpos celestes do sistema solar. Em 2045, elegera Marte como o melhor planeta para minerar e autorizara para esse trabalho a empresa SIENAR Industries.

Em 2048, a SIENAR lançara de Kalvion naves espaciais levando a Marte Veículos de Mineração Não Tripulados (UMVs). Suas UMVs eram movidas por energia nuclear, para aumentar-lhes a vida útil e operacional. Em 2049, a mineração tornara-se operacional e os recursos extraídos passaram a ser enviados à Terra.

Em 2051, a SIENAR implantou em Marte (UMVs Mk2) a segunda geração de UMVs movidos a energia nuclear, com maior capacidade de mineração. Lançou também o satélite de varredura Aeneas-1 na órbita polar de Marte, para obter o máximo benefício da nova tecnologia UMV Mk2. O Aeneas-1 revelou concentrações de recursos em Marte e controlou remotamente as operações de UMVs Mk2. O sistema mostrou poder proporcionar a Kalvion uma solução viável e de longo prazo para substituir recursos naturais não renováveis no mercado interno.

Em 2052, comprovado o êxito dos espelhos OptronRay em órbita polar de Marte, a Agência Espacial de Neapilia publicou nota à imprensa mundial sobre o programa ‘50 Raios da SalPA’, instando todos os países a usarem essa solução pioneira ‘em benefício da Humanidade’. Entidades públicas e privadas de todos os países foram convidadas a pré-encomendar HAMs da SalPA Corp., antes da implantação em massa dos ‘50 Raios do SalPA’.

Essa propaganda perturbou Kalvion. Os UMVs da SIENAR e o novo UMV Mk2 tinham sido projetados para operar no ambiente natural de Marte. O programa ‘50 Raios do SalPA’ poderia modificar a temperatura de Marte, a composição e a pressão de sua atmosfera, anulando as vantagens das tecnologias da SIENAR. O transporte de recursos a Kalvion teria de cessar.

A notícia alarmou numerosos países em desenvolvimento. Alguns deles, com alta densidade populacional e escassez de terras, não tinham dinheiro para comprar HAMs da SalPA Corp. e criar seus próprios assentamentos em Marte. Também os preocupava a perspectiva de que países e empresários ricos ocupassem os ‘melhores lugares’ de Marte com seus próprios HAMs.

Em 2053, Kalvion pediu oficialmente a Neapilia o fim do programa OptronRay da SalPA Corp., devido a seus efeitos para o plano de mineração espacial de Kalvion. Em 2054, Neapilia ignorou o pedido e insistiu em que Kalvion comprasse HAMs da SalPA Corp.

De repente, perdeu-se o contato entre o Aeneas-1, de Kalvion, e o Mk2 de UMVs em Marte. O empenho da SIENAR não logrou restaurá-lo. Os especialistas contratados para resolver o problema concluíram: a comunicação fora interrompida devido a perturbações atmosféricas e condições de temperatura de Marte, possivelmente causadas pela implantação dos espelhos OptronRay pela SalPA Corp. A ausência de contato entre Aeneas-1 e os UMVs Mk2 provocou a interrupção da mineração de Kalvion em Marte.

Em setembro de 2054, Chefes de Estado de países desenvolvidos e em desenvolvimento, opostos ao programa ‘50 Raios da SalPA’, reunidos sob a liderança de Kalvion, nas Seychelles, representando quase 9/10 da população mundial, aprovou a ‘Declaração de Seychelles’, que afirmava: as condições ambientais de Marte devem permanecer inalteradas até que o consenso internacional adote um acordo multilateral sobre o regime específico de exploração e alocação dos recursos naturais de Marte.

Com base na Declaração de Seychelles, em novembro de 2054 Kalvion pediu formalmente ao Conselho de Segurança da ONU a condenação da intervenção ambiental em Marte, por constituir ‘ameaça à paz e segurança internacionais’, e a adoção de medidas apropriadas, em conformidade com a Carta da ONU. Neapilia devia acabar com sua mineração.

Em 13 de novembro de 2054, após reunião conflitante, o Conselho de Segurança da ONU aprovou por unanimidade Resolução expressando preocupação com a situação em Marte e instando Neapilia a, ao realizar atividades de exploração de Marte, ‘respeitar os princípios consagrados nos tratados sobre o espaço e, em especial, no Tratado sobre os Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, incluindo a Lua e Outros Corpos Celestes (Tratado do Espaço, de 1967); e a levar em consideração os direitos e deveres de outros Estados de acordo com o direito internacional’.

Em agosto de 2055, respondendo à decisão do Conselho de Segurança da ONU, Neapilia declarou: as operações de Marte são conduzidas com ‘as mais nobres intenções’ de seu país ‘para o bem-estar de toda a Humanidade’. Acrescentou que o processo não poderia ser revertido, pois isso causaria ‘um desastre para Neapilia e para toda a humanidade’.

Diante do fracasso do Conselho de Segurança da ONU em interromper o programa “Raios 50” da SalPA Corp., Kalvion declarou sua decisão de adotar ‘medidas de proteção’ caso Neapilia não cessasse imediatamente sua intervenção em Marte. Neapilia nada respondeu formalmente.

Em 5 de janeiro de 2056, a TheosAres observou que os dois espelhos OptronRay em órbita em Marte mudavam seu ângulo em 3º por dia. Segundo pesquisas, o controle do OptronRay fora afetado por interferência eletrônica remota de fonte desconhecida, de fora da estação.

TheosAres não conseguiu restaurar o controle dos espelhos orbitais, que, em 10 dias, haviam mudado seu ângulo em 30º. A nova posição dos espelhos levou o aquecimento dos polos de Marte a um final inesperado. Devido à grande interferência de comando, o sistema foi ‘bloqueado’. Exigia-se a instalação de um sistema de controle inteiramente novo.

A SalPA Corp anunciou a suspensão, por tempo indefinido, do programa ‘50 Raios’. Foram cancelados todos os pedidos e contratos de compra de HAMs. A tecnologia de espelhos orbitais foi paralisada. A SalPA Corp. entrou em processo de falência e foi liquidada.

Em 17 de janeiro de 2056, Kalvion revelou que a interferência no controle da OptronRay fora realizada por técnicos cibernéticos do próprio país. Disse ainda que ‘essas contramedidas legítimas seriam mantidas até Neapilia declarar o abandono definitivo do programa ’50 Raios’. Neapilia protestou veementemente contra tais declarações, porém nada conseguiu.

Tentando resolver suas disputas, Neapilia e Kalvion entraram em consultas diplomáticas, mas seus resultados foram inconclusivos. Neapilia abriu processo contra Kalvion por meio de requerimento à Corte Internacional de Justiça. Kalvion aceitou a jurisdição da Corte e as partes apresentaram a seguinte ‘Declaração de Fatos Acordada’:

‘Neapilia solicita à Corte que decida e declare que:

1) As ações de Kalvion constituíram um ataque cibernético ilegal contra Neapilia, contrário ao direito internacional e aos usos pacíficos do espaço exterior;

2) Kalvion é responsável pela perda total do programa ‘50 Raios’ e por todos os danos consequentes, perda de lucros e liquidação da SalPA Corp.; e

3) Neapilia não é responsável pelo fim das atividades de mineração de Kalvion em Marte.

Kalvion pede ao Tribunal que decida e declare que:

1) A ação de Kalvion de impedir as operações dos espelhos orbitais OptronRay foi ato legal, não agressivo e necessário para defender seu acesso a recursos espaciais e assegurar a proteção do ambiente de Marte;

2) Kalvion não é responsável por qualquer dano relacionado à interrupção do programa ‘50 Raios’, nem por qualquer consequência na empresa SalPA Corp. e

3) Neapilia é responsável pela cessação das atividades de mineração de Kalvion em Marte.’

Neapilia e Kalvion são Partes da Carta da ONU e dos cinco tratados sobre o espaço exterior.

No prazo do caso, nenhum regime de exploração internacional foi instalado em Marte, segundo o Artigo 11 do Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e Outros Corpos Celestes (1979). Não há nenhuma questão de jurisdição perante a Corte Internacional de Justiça.

Minhas observações

O caso aqui descrito parece não dar a devida importância à Cláusula do Bem Comum, expressa no Artigo I (§ 1º) do Tratado do Espaço, em termos claros e inequívocos: ‘A exploração e o uso do espaço cósmico, inclusive a Lua e demais corpos celestes devem ter em mira o bem e o interesse de todos os países, qualquer que seja o estágio de seu desenvolvimento econômico e científico, e são incumbência de toda a humanidade.’

Esse é o princípio nº 1 do Tratado amplamente visto como a Constituição do Espaço e das Atividades Espaciais, hoje ratificado por 104 países e assinado por outros 25, que formam larga maioria entre os 193 Estados-Membros da ONU. Esse princípio fundamental não é citado no caso em questão. A querela se reduz ao conflito tecnológico, industrial e comercial travado entre apenas dois Estados e duas empresas privadas multinacionais, beneficiadas pelos dois Estados. Diante dos imensos problemas ali tratados, de interesse para todos os povos do nosso planeta, o caso revela-se inexpressivo e injustificável.

Podem dois países e duas corporações privadas arrogar-se o direito de mudar, por conta própria, o clima de Marte e transportar a água ali colhida para seus territórios na Terra, ou minerar os recursos marcianos e também trazê-los para o nosso planeta, sem sequer consultar a comunidade internacional e suas organizações, como a ONU e tantas outras?

O espaço é ou não é patrimônio de todos os países, de toda a humanidade?

Sobre o autor:

José Monserrat Filho é vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), ex-chefe da Assessoria de Cooperação Internacional do Ministério da Ciência e Tecnologia (2007-2011) e da Agência Espacial Brasileira (AEB) (2011-2015), diretor honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, e Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica. Foi diretor da revista Ciência Hoje e editor do Jornal da Ciência, da SBPC. É autor de “Política e Direito na Era Espacial – Podemos ser mais justos no Espaço do que na Terra?”, Vieira & Lent Casa Editorial, 2017. E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.

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