Reconstrução da medicina humana

Por Dioclécio Campos Júnior, médico e professor emérito da UnB, para o Correio Braziliense em 17/12/2020

 

A prática da medicina pode promover a saúde das populações, desde que cultivada a relação humana como base sagrada da profissão. Para que se mantenha sua legítima origem e o respectivo legado histórico, há de ser valorizada como uma das ciências humanas.

Nos mais remotos tempos, a relação médico/paciente já revelava a sua natureza humanista. As abordagens diagnósticas e terapêuticas expressavam, na maioria das vezes, o teor intelectual e espiritual condizente com a essência do ser humano. É uma virtude a ser projetada acima do atual cientificismo químico e tecnológico cujas concepções são limitantes.

Algumas obras já analisaram bem o cerne da Medicina como ciência humana. Um exemplo é o livro Causas Sociais da Doença, publicado no Brasil em 1982, de autoria do psicólogo e clínico britânico Richard Totman. O tema foi abordado com estilo bem claro e convincente. O autor salienta a concepção da medicina psicossomática como forma de assistência que merece ser preservada, fortalecida e utilizada em favor da nobre causa da saúde.Os avanços farmacológicos e tecnológicos, alcançados nos últimos séculos, desvirtuaram a prática atual da profissão. Por isso, não se identifica a evidência científica de que a desumanização da Medicina é o efeito colateral de tais avanços.

Um dos conceitos referenciais, formulados com espírito crítico e construtivo, define o que deve ser realmente priorizado em favor da saúde das pessoas. Enfatiza o bem-estar físico, mental e social do indivíduo como condição única para o verdadeiro desenvolvimento da harmonia integral entre a mente e o corpo, sem a qual o conceito de vida humana desaparece. Essa valiosa visão reforça a relevância do papel reflexivo que não pode deixar de ser desenvolvido. Somente assim, será possível resistir ao modelo econômico materialista e consumista, que tomou conta da sociedade moderna por meio de crenças e dogmas tecnológicos, cujas consequências negativas são cada vez mais evidentes.

Grandioso exemplo de que a humanidade possui seus méritos nesse contexto é o conteúdo conceitual formulado em 1972, quando a Organização das Nações Unidas acrescentou os componentes sociais ao conceito de ecologia. O meio ambiente passou, então, a ser definido como o conjunto dos elementos físicos, químicos, biológicos e sociais. É a síntese do padrão saudável das interações humanas, a ser implantado nos diversos modelos de sociedade em consonância com os princípios morais, éticos e altruístas que não podem ser menosprezados. Do contrário, a saúde deixará de ser vista como bem-estar físico, mental e social, mantendo-se sob o comando do cientificismo interesseiro e dominante. É essa a atmosfera da era industrial, que tem contaminado a maioria das concepções profissionais, afastando-as do seu acervo histórico para submetê-las ao capitalismo reinante.

A visão humanista, acima mencionada, atrai cada vez menos as novas gerações. São formadas em estreito alinhamento com o materialismo sem limites, prevalecendo o interesse empresarial que desarticula a maioria dos valores humanos cultivados no passado. Por isso, a indústria e o comércio de remédios e equipamentos prosperaram, sem limite, durante o período de globalização da economia, fase em que o consumismo de tais produtos passou a ser propagado ilusoriamente como a grande conquista em favor da promoção da saúde.

Assim, o valor prioritário do bem-estar físico, mental e social das pessoas foi substituído pelo tratamento das moléstias. Contudo, como já bem demonstrado, a redução das enfermidades não está ligada à prática da cultura do diagnóstico e terapêutica. Vai muito além. Resulta das ações e estratégias preventivas, concebidas e implantadas para que a sua frequência se torne cada vez menor. Em outras palavras, a saúde da população não requer número ilimitado de profissionais que identifiquem e tratem as doenças, mas o investimento prioritário nas medidas preventivas que contribuam para o declínio de sua incidência.

Todas essas reflexões devem ser abrangentes a fim de que a promoção do bem-estar físico, mental e social seja reconhecida e defendida como direito igualitário, coerente com os progressos promovidos em favor da cidadania. Em síntese, a medicina merece ser reconstruída humanamente, em benefício de todos e de cada um. Para tanto, é indispensável reformular o seu currículo de graduação universitária a fim de que, ademais do progresso tecnológico, os conteúdos das ciências humanas sejam incorporados ao perfil dos novos profissionais.

Recommended Articles

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *