Artigo de Eugênio Giovenardi, ecossociólogo e escritor, em 29/07/2020.
- O ataque súbito, mas não imprevisível, do vírus Covid19 deu-me oportunidade de apreciar mais longa e demoradamente o progresso da regeneração do ecossistema na área do Sítio das Neves (DF), do qual sou apenas hóspede, e constatar a harmonia da biodiversidade crescente. O ar puro, as águas correntes deram, ao isolamento recomendado, o silêncio produtivo para rever os erros humanos cometidos contra a natureza e aproximar-me humildemente dela.
- Acompanho, há 46 anos, a regeneração dessa área de 70 hectares. Ao conviver com os habitantes originais do ecossistema – árvores, pássaros, insetos, cobras, tatus, macacos e outros animais -, ao longo de minhas observações, percebi que faltava um elo entre a espécie humana e as outras vidas. Surgiu, nesse momento angustiante, a ecossociologia. Essa descoberta me fez compreender as relações entre as espécies vivas não humanas e as possíveis e necessárias relações da espécie humana com o restante da biodiversidade.
- Ao perceber, em 1980, as dificuldades de água, no período anual de estiagem entre abril e outubro, decidi tomar algumas medidas drásticas. Entre elas, retirar da área os poucos animais de pastoreio (gado vacum, ovino e cavalar) por serem consumidores de grande quantidade de matéria verde, diminuindo a umidade natural, além de compactarem o solo com pisoteio frequente.
- Empreendi uma campanha de esclarecimento junto aos vizinhos para não atearem fogo no cerrado, como era costume. Ainda assim, por várias vezes, a área sofreu queimadas, três das quais de grande extensão. Essas áreas têm sido devastadas durante décadas, tanto por animais, quanto por fogo e corte de árvores para carvão vegetal. Findo o período de estiagem, as áreas se expunham, quase desnudas, às chuvas torrenciais de novembro a março. Grande parte das águas descia aos córregos arrastando sedimentos, assoreando rios e empobrecendo o solo.
- Um minucioso mapeamento da área revelou a necessidade de captar e deter as águas da chuva para impedir a descida das águas e, assim, estancar o arrasto de sedimentos morro abaixo. Centenas de pequenas barragens, nos canais de escoamento e grotas, retiveram, logo nas primeiras chuvas, milhares de metros cúbicos de água. A permanência das águas por dois a três meses depois das chuvas estimulou o crescimento de gramíneas, arbustos e árvores de bom porte, como a sucupira, jacarandá, embiruçu, jatobá, angico, carvoeiro, cajazeira e centenas de espécies que, já no primeiro ano, modificaram o ambiente. As barragens e a nova vegetação se tornaram as peças essenciais para a contenção das águas e regeneração do cerrado. A contenção de águas pluviais estimulou as nascentes com o aumento da recarga dos aquíferos. O mapeamento do terreno mostrou os locais adequados para captação das águas da chuva em toda a extensão da área. A média anual de captação e retenção de águas pluviais, no Sítio das Neves, situa-se ao redor de 490 milhões de litros.
- Diante do êxito da captação de águas da chuva, tanto pela vegetação crescente e densa, quanto pelas barragens de contenção, foi feito um isolamento indevassável das áreas de nascentes para que a vegetação nativa não fosse alterada e mantivesse permanente umidade com o fim de assegurar os cursos de água.
- O ponto de não retorno, a que estava condenada a área, foi quebrado ao redor dos 30 anos de pousio ininterrupto. Ao se dar continuidade às ações de proteção do ecossistema, o reflorestamento nativo se faz por estreita cooperação entre todos os habitantes da área. Os pássaros, os animais herbívoros, o vento contribuem para a disseminação das sementes de maneira natural e no momento certo. O plantio de árvores, no Cerrado, deve ser cuidadosamente estudado para não interferir no sistema de reprodução natural. A biodiversidade da área foi sabiamente respeitada. A presença humana, nesse processo lento acompanha como espectadora e desfrutadora da regeneração do ecossistema num ambiente de harmonia e confiança. Os primeiros 15 anos foram de tateio e aprendizagem e, de modo especial, de enfrentamento contra o hábito das queimadas.
- A regeneração é um processo lento e paciente. Quarenta anos não são suficientes para a regeneração definitiva de uma área castigada durante 200 anos pela mão humana. Mas, depois de 40 anos, com a integração solidária da espécie humana, a biodiversidade se consolida localmente. Surgem novas alternativas oferecidas pela natureza. Atrai vidas que perderam seu habitat. O entorno, porém, continua agressivo. Rodovias duplicadas e ocupação tradicional da área rural, fugindo das dificuldades impostas pela urbanização irracional e pelo crescimento da população, no DF, são circunstâncias a serem administradas pelas futuras gerações.
9. Esta é uma experiência de glocalização. Podem-se globalizar as experiências locais, num corredor ambiental, para regeneração dos ecossistemas necessários à conservação e reprodução da vida. Pequenas áreas protegidas e reflorestadas aumentam a umidade, purificam o ar, enriquecem a biodiversidade, reativam as nascentes e capitalizam as águas da chuva em benefício do ecossistema.
Photo credit: mikecogh on Visualhunt.com / CC BY-SA