Por Wanderley de Souza, professor titular na UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências e da Academia Nacional de Medicina, para o Monitor Mercantil em 02/04/2020
Estamos atravessando a mais dramática crise no campo da saúde dos últimos anos. Afinal, a Covid-19, que fez um estrago inicialmente na China e em outros países asiáticos e europeus, chegou ao Brasil de forma sorrateira e rapidamente passou a atemorizar a quase totalidade da população.
Para os especialistas da área, não é grande surpresa. Já em 2019, um grupo de pesquisadores (Marli Cupertino, Michely Resende, Nicholas Mayers, Lorendane Carvalho e Rodrigo Batista) que trabalha em universidades localizadas em Minas Gerais fez uma revisão sistemática sobre o papel de animais silvestres como fonte de doenças infecciosas emergentes com possibilidade de causar sérios problemas de saúde pública (o artigo foi publicado este ano no Asian Pacific Journal of Tropical Diseases).
Pelos dados coletados, os pesquisadores indicaram serem os morcegos e primatas não humanos as fontes de maior preocupação. Entre os possíveis agentes encontrados nestes animais aparecem os vírus, entre os quais o corona, ao lado de outros como influenza e ebola.
Na realidade, quase todos os animais que vivem nas florestas albergam um conjunto de agentes que podem não causar grandes problemas nos animais silvestres, mas que, em contato com a espécie humana, podem levar a patologias graves.
Neste sentido, me recordo de uma conversa que tive com o saudoso mestre Sir Ralph Lainson, eminente parasitologista inglês que se apaixonou pelo Brasil e que viveu boa parte da sua vida em Belém, estudando protozoários encontrados nos mais diferentes animais silvestres.
Ele encontrou no sangue de pequenos répteis que vivem na copa das árvores da floresta amazônica um protozoário que juntos caracterizamos, em colaboração com colegas que trabalham no Instituto Evandro Chagas e na Universidade Federal do Pará.
Verificamos que este protozoário infectava exclusivamente os neutrófilos, justamente as células mais efetivas em ingerir e destruir prontamente diferentes microrganismos. Como se tratava de algo novo, foi descrito como um novo gênero, designado de Fallisia. Além disso, como escolheu como alvo para se esconder da resposta imune humoral do pequeno animal uma célula evitada pelos demais microrganismos, a nova espécie foi chamada de Fallisia audaciosa. Ele comentou sobre os danos que esse protozoário poderia fazer no caso de se adaptar à espécie humana.
Na realidade, sabemos que a natureza é pródiga em agentes infecciosos que vivem em equilíbrio com seus hospedeiros naturais, mas que podem se tornar terríveis quando chegar ao homem. Ou seja, novos agentes podem estar sempre surgindo. Por este motivo, é fundamental que se incentivem pesquisas básicas para identificação da biodiversidade dos mais diferentes agentes infecciosos em todo o mundo.
Os colegas do Instituto Evandro Chagas já identificaram dezenas de novos vírus com elevado potencial de causarem problemas na espécie humana. O lógico seria estudar todos eles, identificar seus antígenos e, preventivamente, produzir vacinas contra eles.
Infelizmente, pouco vem sendo feito, sobretudo nestes últimos anos onde o governo vem optando por não prestigiar as atividades de pesquisa científica e tecnológica. No entanto, quando surge o problema, como é o caso agora da Covid-19, as autoridades ficam ansiosas por respostas rápidas quanto ao desenvolvimento de uma vacina ou o encontro de drogas efetivas para serem utilizadas imediatamente.
Em seu artigo de 23 de março publicado em O Globo, Fernando Gabeira alertou para o fato de que o Ministério de Ciência e Tecnologia não estava sendo ouvido pelo governo na atual crise. Vários ministros dando entrevistas, mas não o Ministro Marcos Pontes. Gabeira, inclusive, questionou se por acaso ele não estaria na Lua.
É fundamental que o Governo Federal corra em busca do tempo perdido e faça um investimento significativo para a organização de uma infraestrutura de pesquisa adequada para uma vigilância permanente no que se refere a agentes infecciosos emergentes e reemergentes.
Para ficar apenas na área dos vírus, a comunidade científica estima, de forma conservadora, já que vem sendo contemplada com migalhas nos últimos anos, um investimento inicial para 2020-2021 de R$ 300 milhões a serem investidos nos vários grupos de pesquisa que atuam no país neste setor.
Estes recursos podem ser prontamente liberados da reserva de contingência do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que conta hoje com recursos da ordem de R$ 18 bilhões no Tesouro Nacional.
Nos últimos dias, o Governo Federal enviou ao Congresso Nacional uma medida provisória solicitando R$ 100 milhões para apoiar pesquisas sobre Covid-19. Urge que o Congresso Nacional amplie este valor, pois ele é insuficiente para que se organize uma infraestrutura adequada para responder às inúmeras questões levantas por esta pandemia e se organizar para outras tantas que poderão surgir no futuro.
A resposta da comunidade científica brasileira, há poucos anos, quando surgiu a infecção pelo vírus da zika foi um atestado da competência e da maturidade dos nossos pesquisadores que atuam na área. Por outro lado, neste momento de crise é preciso fortalecer outras áreas importantes para dar suporte ao desenvolvimento do setor produtivo em diferentes áreas. Os recursos da reserva de contingência do FNDCT devem ser disponibilizados à medida que os vários setores da Ciência, Tecnologia e Inovação, liderados pela ABC-SBPC, apresentem programas bem elaborados e justificados.