As ciências humanas e básicas também são prioritárias

Gerhard Ernst Overbeck (UFRGS), Gabriela Marques Di Giulio (USP), Carlos Eduardo De Viveiros Grelle (UFRJ), Mercedes Maria da Cunha Bustamante (UnB), e COALIZÃO CIÊNCIA E SOCIEDADE, para Direito da Ciência em 30/03/2020

 

Em 24 de março de 2020, com o país e o mundo enfrentando a pandemia da Covid-19, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) publicou portaria que define as prioridades de pesquisa até 2023, com objetivo de “alavancar setores com maiores potencialidades para a aceleração do desenvolvimento econômico e social do país”. Essas prioridades devem ser observadas por todos órgãos, unidades e entidades vinculadas ao MCTIC, inclusive o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e a Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), duas importantes agências de fomento à pesquisa no Brasil.

As áreas prioritárias compõem cinco grupos: Estratégicas, Habilitadoras, de Produção, para Desenvolvimento Sustentável e para Qualidade de Vida. Para cada uma, são especificados os setores contemplados. Contudo, chama atenção a ausência das ciências humanas e da ciência básica.

Certamente, investimentos em tecnologia e inovação nas áreas elencadas são necessários para enfrentar os nossos enormes desafios. Mas não considerar a ciência básica e as ciências humanas entre as prioridades é míope e não levará à solução dos problemas atuais e futuros.

As ciências humanas são essenciais para entender a sociedade, avaliar suas demandas, os impactos de novas tecnologias e políticas, e como elas se expressam nas práticas sociais e nos processos decisórios. Vivemos no Antropoceno, quando as ações humanas em muitos aspectos já exercem mais impacto sobre o planeta Terra do que os processos biofísicos. Os crescentes efeitos das mudanças climáticas agravam as contradições das sociedades contemporâneas, acentuando, entre outros, as iniquidades socioeconômicas e a privação de Direitos Humanos em áreas urbanas e rurais. Embora existam soluções técnicas para reduzir as emissões de carbono e adaptar as sociedades às mudanças necessárias, sua implementação está sendo difícil e em ritmo mais lento que o necessário. O desafio passa pela compreensão da cultura e do comportamento humano, das dimensões éticas envolvidas, e das próprias relações entre ciência e política. Tal complexidade é abordada pelas ciências humanas, cujas pesquisas possuem o potencial de catalisar as respostas dos sistemas socioeconômicos às mudanças climáticas.

O mesmo vale para os demais setores associados às áreas de pesquisa prioritárias para Desenvolvimento Sustentável, Qualidade de Vida, e até de Produção. Como recuperar milhões de hectares de áreas degradadas sem pesquisa de cunho socioeconômico que avalie onde a restauração é factível em termos de custos e de possibilidades de renda? Como avançar na produção de alimentos sem considerar a qualidade de vida no campo e as interações que existem entre o rural e o urbano? Como criar cidades inteligentes sem a análise do impacto social do uso crescente – e certamente necessário – de novas tecnologias e de propostas para lidar com tais efeitos?

As mudanças globais afetam não só as bases materiais da nossa vida, mas também, e de forma profunda, a nossa cultura. Sem as contribuições das ciências humanas será impossível desenvolver sistemas de gestão eficientes que considerem e protejam a diversidade cultural e social que é a base das sociedades democráticas. Em um mundo cada vez mais tecnológico, as ciências humanas nunca foram tão importantes, pois a formação de pessoal qualificado para tomar decisões também requer pesquisa em áreas como ética, sociologia e história.

Excluir a ciência básica, cujo objetivo é expandir o conhecimento humano sem aplicabilidade imediata, é ignorar como tecnologia e inovação são geradas. Na atual pandemia da Covid-19, o mundo aguarda ansiosamente o desenvolvimento de medicação eficaz e vacina segura para combater a doença. Em um primeiro olhar, trata-se de uma questão apenas de pesquisa aplicada, realizada para solucionar um problema específico e grave. No entanto, este tipo de pesquisa é apenas possível com base em estudos sólidos e muitas vezes de longa duração que investigam, por exemplo, as interações entre células do hospedeiro (no caso, o humano) e o vírus, a fim de caracterizar as reações imunológicas, ou que resultaram na descoberta de moléculas com relevância farmacológica.

Os recursos públicos precisam ser investidos de maneira a garantirem retorno à sociedade, na pesquisa científica e em todas as outras áreas. Porém, tal planejamento requer uma avaliação ampla e integrada dos desafios futuros, e decisões desta magnitude para o destino do país deveriam ser baseadas em preceitos democráticos por meio da participação e do diálogo com a comunidade científica nacional.

O que o Brasil precisa é de mais ciência e pesquisa em todas as áreas do conhecimento. Priorizar apenas as áreas aplicadas e não incluir as ciências humanas nem a ciência básica indica falta de visão sobre a verdadeira natureza de nossos problemas. Tanto os cortes sucessivos de recursos, quanto a portaria do MCTIC demostram que o Governo Federal está na contramão de ações que poderiam efetivamente alavancar nosso desenvolvimento. Não podemos abrir mão de soluções que, dada a complexidade do mundo, virão certamente da contribuição de múltiplas disciplinas.

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