A ditadura da imagem

Dioclécio Campos Júnior*

A sociedade do século atual deprecia tanto a linguagem falada quanto a escrita. A leitura torna-se raquítica, insignificante. Consolida-se o idioma da imagem, poderoso instrumento das forças dominantes da nova era. Prevalece como complexo artifício virtual utilizado para driblar a vigilância da consciência das pessoas, alojando-se, incólume, nas profundezas do inconsciente. É a estratégia eficaz para a padronização comportamental pretendida.

Nos idos tempos da construção de um processo civilizatório qualificado, esboçava-se a perspectiva de surgimento dos valores realmente humanos. Fortaleceram-se a escrita e a leitura. A imagem, naquela época, era a expressão da criatividade artística nas modalidades da pintura e da escultura. A produção de livros históricos, filosóficos e literários expandiu-se fortemente graças a talentos intelectuais extraordinários. Ocorreu o mesmo com a música, reconhecidamente clássica, que conferia melódica riqueza aos cenários espetaculares e calava fundo nas entranhas da alma de então.

O livro é uma das invenções mais diferenciadas de todas as épocas. Os textos escritos despertam distintas interpretações, quando lidos. De fato, um leitor possui tanta ou, às vezes, até mais criatividade que o autor. Um personagem de determinado romance tem o perfil construído originalmente não só por quem escreveu o livro, mas também por pessoas que procedem à sua leitura. Em outras palavras, a linguagem escrita é o estímulo eficaz que enseja a reflexão crítica e original do leitor. Corresponde a uma produção cultural que se identifica com a liberdade de expressão, enriquecida pela plena capacidade interpretativa. Os escritores que interagem com o público, durante as chamadas feiras do livro, impressionam-se ante a bela energia criativa despertada pela leitura. A escrita respeita a diversidade potencial da mente humana. É a substância estruturante do ato de pensar, livre dos recursos televisivos concebidos para inescrupulosas manipulações que exterminam a liberdade de pensar.

A banalização do universo intelectual de cada indivíduo tem contribuído para o desaparecimento do projeto civilizatório da humanidade. Infelizmente, o avanço tecnológico, definido como progresso, vem promovendo verdadeira devastação do território educacional em que começavam a ser construídos os valores éticos, morais, estéticos e artísticos de uma nova era da história da humanidade.

Nesse tétrico contexto, prospera a força da imagem virtual como componente dotado de elevado potencial de contágio e contaminação, que tem sido a mais potente ferramenta comunicativa a serviço dos interesses dominantes, neutralizando-se a perspectiva de uma saudável evolução da sociedade humana. É uma manobra destinada a padronizar mensagens visuais, criadas a fim de seduzir toda uma população, em benefício dos objetivos econômicos que comandam o espetáculo.

A imagem virtual escapa à análise reflexiva e consciente de cada pessoa. Produz igual impacto em todos os que a veem. Trata-se de ignóbil mecanismo feito para iludir e explorar os cidadãos, bem diferente da linguagem escrita. É o monopólio que subordina a inteligência alheia. Gera a estratégia que inunda o inconsciente com cenas de transbordante violência, estampadas em guerras, bombardeios, massacres, assassinatos das mais distintas formas, armas de fogo transformadas em brinquedos para as crianças, propagandas enganosas de bebidas alcoólicas, carros circulando por espaços paradisíacos, produtos de beleza, nutrientes, roupas e calçados, filmes de terror, erotização incessante.

Os resultados são rentáveis para os empreendedores. Equipamentos bélicos e armas de fogo nunca foram produzidos e vendidos em tão larga escala. O assassinato campeia solto. Automóveis ocupam os espaços urbanos de forma absurda. Tênis, bonés, calças jeans, tatuagens e mochilas uniformizam populações inteiras. O sexualismo invade os locais públicos. A obesidade toma conta dos perfis humanos.

A comunicação de hoje é feita por meio de encenações bem editadas, condizentes com a finalidade gananciosa a que se destinam. Os livros são deveras desvalorizados. Pouca gente entende o que lê. A maioria é vítima do analfabetismo funcional. A civilização desaparece porque é incompatível com os desperdícios do consumismo escandaloso que avança mundo afora, em ritmo irreversível. A literatura se definha. A filosofia se esvai. A leitura vai ficando cada dia mais próxima da sepultura. Assim caminha a humanidade, sob a ditadura da imagem.


Médico, professor emérito da UnB, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, membro titular da Academia Brasileira de Pediatria, presidente do Global PediatricEducation Consortium (GPEC) – E-mail: dicamposjr@gmail.com

 

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