José Monserrat Filho*
\”… o sistema de privilégios e privilegiados…, para se impor
à humanidade, deve antes de mais nada adormecê-la.\”
Milton Santos
Mestre Milton Santos (1926-2001) lançou, em 1982, o livro Pensando o Espaço do Homem, do qual já se publicaram várias edições e reimpressões. Graduado em direito, Milton Santos é um dos nomes mais respeitados da geografia no Brasil. Seus estudos sobre a urbanização nos países do terceiro mundo tiveram grande repercussão acadêmica e política. Em 1994 ganhou o Prêmio Vautrin Lud, considerado o Nobel da Geografia, e em 2006 foi agraciado postumamente com o Prêmio Anísio Teixeira, da Capes, por suas contribuições ao desenvolvimento da pesquisa e da formação de recursos humanos no país.
São dele também os livros Espaço e sociedade, 1979; O espaço dividido. Os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos, 1979; O Espaço do Cidadão, 1987; Técnica, espaço, tempo – Globalização e meio técnico-científico informacional, 1994; entre muitos outros.
Em Pensando o Espaço do Homem, esse baiano de Brotas de Macaúbas, que lecionou e pesquisou em importantes universidades do mundo, fala do espaço globalizado em todo o planeta Terra, cujo processo de formação iniciou-se nos primórdios do capitalismo em meados do século XVI, há mais de 400 anos.
Ocorre que, a partir da segunda metade do século XX, o espaço global começa a expandir-se pelo espaço exterior, graças a notáveis avanços científicos e tecnológicos, que ensejaram os voos espaciais com a criação de foguetes, satélites, sondas e estações espaciais. Iniciaram-se, então, a exploração e o uso do novo ambiente pela espécie humana. Em quase 60 anos, milhares de objetos construídos pela mão humana já foram lançados ao espaço, sobretudo às órbitas da Terra, mas também à Lua, além de Marte e outros planetas, e ao espaço profundo.
Tal movimento, inaugurado em 1957 e chamado de Era Espacial, tem imensos efeitos econômicos, políticos, sociais e culturais, que vêm ampliando a globalização terrestre para o que tem sido denominado de nosso oitavo continente – o sem limites, incomensurável.
“Com a mundialização da sociedade, o espaço, tornado global, é um capital comum de toda a humanidade”, salienta Milton Santos, e adverte: “Entretanto, sua utilização é efetiva e reservada àqueles que dispõem de um capital particular. Com isso, a noção de propriedade privada de um bem coletivo é reforçada.” A novidade é que essa noção está englobando também o espaço exterior. Basta ver a lei (HR 2262) sancionada pelo Presidente dos Estados Unidos em 25 de novembro de 2015, que outorga às empresas norte-americanas o direito de propriedade sobre as riquezas minerais e outros recursos naturais por elas extraídos de asteroides e demais corpos celestes.
“Num mundo em que as determinações se verificam em escala internacional, num mundo universalizado, os acontecimentos são comandados direta ou indiretamente por forças mundiais”, afirma Milton Santos. A ideia de domínio das grandes corporações globais aplica-se igualmente ao espaço exterior e às atividades lá exercidas, hoje oligopolizadas em grande parte, embora sejam essenciais à vida cotidiana de todos os povos da Terra.
Para Milton Santos, “hoje, quando se fala de espaço total, fala-se de uma multiplicidade de influências superpostas: mundiais, nacionais, regionais, locais”. Cabe acrescentar as influências espaciais, que só fazem crescer.
Ele diz que “o espaço é maciço, contínuo, indivisível”. O espaço exterior realmente não é maciço, mas tende a ser, cada vez mais, virtualmente contínuo e indivisível. Isso, porém, não anula a necessidade de se fixar a delimitação entre o espaço aéreo, onde vigora o princípio da soberania dos Estados, e o espaço exterior, onde esse princípio não tem vigência. Não pode haver continuidade entre dois sistemas jurídicos inteiramente distintos.
Segundo Milton Santos, “com o desenvolvimento das forças produtivas e a extensão da divisão do trabalho, o espaço é manipulado para aprofundar as diferenças de classes. Essa mesma evolução acarreta um movimento aparentemente paradoxal: o espaço que une e separa os homens”. O espaço exterior, por sua vez, une a humanidade, real ou potencialmente, pelos serviços vitais que é capaz de prestar ou vender, e, ao mesmo tempo, a separa, pela desigualdade crescente que produz.
Neste tema complexo, Milton Santos frisa: “O que une, no espaço [terrestre], é a sua função de mercadoria ou de dado fundamental na produção de mercadoria. O espaço, portanto, reúne homens tão fetichizados quanto a mercadoria que eles vêm produzir nele. Mercadorias, eles próprios, sua alienação faz de cada homem um outro homem. O espaço, como ponto de encontro (…) é uma reunião de sombras ou, quando muito, um encontro de símbolos.”
Milton Santos diz mais: “Como o espaço se tornou também um produto no mercado, é sua raridade que une os homens… Trata-se de um contra o outro, da separação e não da união.” E conclui: “A unidade dos homens pelo espaço é, pois, uma falsa unidade… É dessa falsa unidade que a separação se alimenta. Os progressos de nossa infeliz civilização conduzem mais e mais a uma sociedade atomizada por um espaço que dá a impressão de reunir.” E também: “O espaço [terrestre], habitação do homem, é também o seu inimigo, a partir do momento em que a unidade humana da coisa inerte é um instrumento de sua alienação.” E ainda: “Os homens vivem cada vez mais amontoados lado a lado em aglomerações monstruosas, mas estão isolados um dos outros.”
Se Milton Santos tiver razão, estaremos levando para o espaço exterior, junto com nossa ciência e tecnologias de ponta, as maiores mazelas sociais desenvolvidas aqui na Terra – paradoxalmente, talvez o único planeta habitado por seres inteligentes.
Daí a recomendação e o apelo de Milton Santos sobre o que fazer do espaço terrestre, mas, a nosso ver, igualmente válido para o espaço exterior, se suas críticas à situação atual se confirmarem e nada for feito para superar os dramáticos problemas apontados:
“Devemos nos preparar para estabelecer os alicerces de um espaço verdadeiramente humano, de um espaço que possa unir os homens para e por seu trabalho, mas não para em seguida dividi-los em classes, em exploradores e explorados; de um espaço matéria-inerte que seja trabalhada pelo homem mas não se volte contra ele; um espaço Natureza social aberto à contemplação direta dos seres humanos, e não um fetiche; um espaço instrumento de reprodução da vida, e não uma mercadoria trabalhada por outra mercadoria, o homem fetichizado.”
Na visão do geógrafo, “desfetichizar o homem e o espaço é arrancar à Natureza os símbolos que ocultam a sua verdade, vale dizer: …é revalorizar o trabalho e revalorizar o próprio homem, para que ele não seja mais tratado como valor de troca”.
Não será isso o que mais inspiram aos humanistas “as vastas perspectivas que a descoberta do espaço cósmico pelo homem oferece à humanidade”, como diz a primeira linha do preâmbulo do Tratado do Espaço, de 1967 – a lei maior das atividades espaciais?
*Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), Diretor Honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, Membro Pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-Chefe da Assessoria Internacional do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB). E-mail: <jose.monserrat.filho@gmail.com>.