A era da espécie Homo insapiens

Por Dioclécio Campos Júnior, médico e professor emérito da UnB, para o Correio Braziliense em 01/03/2020

 

O padrão da sociedade humana precisa ser revisto. As virtudes inerentes à espécie Homo sapiens, surgida há 300 mil anos, têm sido desvalorizadas pela força dos poderes dominantes. O progresso tecnológico, que é produto da inteligência humana, muda, por completo, os valores que foram sendo construídos ao longo do tempo. Banaliza-se a alma em benefício do corpo. Ridiculariza-se a capacidade reflexiva em favor do automatismo comportamental. Desconstrói-se o livre pensar em nome do comando imperial exercido sobre a humanidade.

A automação das pessoas desestrutura o caráter original de sua personalidade, subordinando-as aos modelos que lhes são impostos de forma subliminar. Desagregam-se os pilares que são o alicerce de uma sociedade realmente humana. A cidadania é convertida em mera     ficção. As interações sociais perdem sentido. Desaparece o relacionamento altruísta sem o qual a paz é irrecuperável.

O individualismo revigora-se como perfil existencial da atualidade. A comunicação com o próximo deixa de ser amorosa; torna-se pura prática eletrônica, desprovida das vibrações espirituais que fazem pulsar os sentimentos inspiradores da fraternidade.

O passado histórico, durante o qual foram construídas as virtudes mencionadas, é convertido em insignificante referência para a sociedade que acredita ser dotada do mais alto grau de inteligência e criatividade. O consumismo padroniza a materialidade como crença única das populações modernas, distanciando-as da espiritualidade universal que desaparece do planeta.

As células familiares, que são a base da estrutura tissular do organismo da sociedade, desfiguram-se e deixam de cumprir o relevante papel que desempenhavam. Com efeito, as famílias são unidades estruturais que já não se reproduzem em quantidade e qualidade indispensáveis à renovação das populações. As crianças perdem o direito ao colo materno. Crescem sem a oportunidade do contato pele a pele com a mãe, altamente necessário à adequada diferenciação do cérebro.

Os recém-nascidos de hoje são recebidos e criados em carrinhos, como se fossem cadeirantes, com pouca chance da amamentação exclusiva nos primeiros meses de vida. O afeto materno, paterno e de outros membros da família não é mais o mesmo, se comparado ao aconchego com o qual os filhos eram recebidos no berço familiar do passado.

Assim tratadas, as novas gerações humanas vão sendo desprovidas da sua originalidade potencial. Passam a ser moldadas, desde o nascimento, com o perfil consumista ilimitado que unifica o comportamento das populações, subordinando-as ao materialismo imediatista que toma conta do mundo atual. A tecnologia de comunicação invade a mente das crianças e desvia a rota do seu desenvolvimento físico, mental e espiritual por meio de progressiva automação comportamental que reduz a perspectiva de uma formação humana autêntica em todos os sentidos.

Na verdade, seres autômatos e inconscientes nascem dos avanços tecnológicos que, indevidamente utilizados, escravizam a humanidade em favor dos interesses dominantes. Nesse sentido, a educação a distância é o marco da atualidade. Corresponde ao conceito distorcido da prática educativa que vai sendo aplicado mundo afora. Universalizar informações por meio dos recursos eletrônicos disponíveis é, sem dúvida, uma conquista. Contudo, educar não é apenas informar. É muito mais. A informação pode ser repassada a distância, sem limites. Mas, a educação somente será legítima se for promovida presencialmente.

Todo esse preocupante cenário, ainda que descrito de forma sintética, traz à tona os sintomas e sinais de grave enfermidade que abala a harmonia do organismo humano internacionalmente. A inteligência artificial, característica dos equipamentos gerados pela criatividade da espécie, adquire dimensão imprevisível e com ilimitada influência sobre o padrão de vida das novas gerações.

Como resultado desse processo, a inteligência passa a ser transferida da mente para os autômatos tecnológicos. No entanto, a diferenciação mental que singularizou a espécie humana é componente intransferível. Trata-se da sapiência ou sabedoria, que se tornou aprimorada ao longo do tempo. É o valor a ser cultivado a fim de que a sociedade venha a ser reconstruída nos moldes civilizatórios humanistas. Sapiência é a alma da espécie Homo sapiens. Se não for assim valorizada, avançará a Homo insapiens com plena inteligência artificial, porém, desprovida da sabedoria humana.

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